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segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Olhos de serpente (Dangerous game / Snake eyes, EUA, 1994), de Abel Ferrara


Os personagens de Abel Ferrara encontram-se na encruzilhada entre o vício e “o salto para a fé” (Kierkegaard). Não há espaço, no mundo de Ferrara, para outro tipo de gente senão o libertino e o convertido (ou o libertino a caminho da conversão). Trata-se, portanto, de um mundo movido pelo excesso, um mundo situado à beira de um apocalipse, onde a medida do bom senso não tem vez. Se os personagens vivem a danação, o estilo lhes faz jus: Ferrara é rigoroso, elabora com cuidado a encenação, mas faz isto desprezando olimpicamente a tomada rara e o efeito belo. Quando a beleza aparece, aparece submetida à idéia. Religioso, mas também trágico, Ferrara não contempla, não poetiza. Em vez do plano-sequência “espiritualizado” de Tarkovski, a câmera de Ferrara treme, tateia, alucina. 

Olhos de serpente (1994) está longe de equiparar os melhores filmes de Ferrara (O Rei de Nova York, Vício Frenético, Maria), mas representa com muita dignidade a insistente imersão de Ferrara nas entranhas do homem em danação, dos degradados carcomidos de culpa. Eddie (Harvey Keitel) é um cineasta que está filmando uma história a la Bergman sobre um casal em crise. Sua dupla de atores é formada por Francis (James Russo) e Sarah (Madonna, provando ser atriz de primeiro time). No filme dirigido por Eddie, o conflito básico é gerado pela incompatibilidade de gênios entre Sarah, recém convertida, e Francis, que não só continua na “bagaceira” como também não suporta a nova vida de Sarah. Estamos num palco que Ferrara conhece bem: o do destino humano dividido entre danação e salvação num mundo regido pelo mal.

Como no conto “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, de Jorge Luis Borges, a ficção (encenada no filme de Eddie) começa a envenenar a realidade, e o cotidiano dos protagonistas do filme e também o do diretor começa a desabar. Francis é a primeira vítima, ao se perder na intensidade do seu papel, mas nada é mais dolorosamente degradante do que o progressivo esfacelamento da família de Eddie (esfacelamento, aliás, que já se anuncia sutilmente na primeira cena do filme). Ao recorrer a mise en abîme, mostrando o filme dentro do filme, Abel Ferrara quer menos refletir sobre os processos de sua arte do que nos falar de algo (em termos metafísicos) muito mais grave: o mal. Sobram farpas também para Hollywood e sua indústria do estrelato. Muitos elementos de Olhos de serpente foram retomados e aprimorados no espantoso Maria (2005), sobre qual um dia terei de escrever.


terça-feira, 24 de setembro de 2013

Retalhos [1]


Se há uma marca singular da cultura universitária brasileira hoje é a presença soberana, impositiva, dos formulários. Uma das principais atividades de um professor com doutorado em uma universidade pública hoje é preencher formulários; sua principal virtude é a paciência. Capacidade intelectual e domínio de escrita são importantes, mas não imprescindíveis: um professor burro e incapaz de articular duas frases com um conectivo correto, se tiver paciência e pegar o jeito do gênero formulário, preenchendo-o com aquelas fórmulas batidas, pode mover mundos.

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A dEsEnrEdoS acaba de conquistar o Qualis B4 na área de Educação. Antes já possuíamos aquela qualificação em Letras, História, Filosofia e Teologia. Nosso Qualis até poderia ser maior, mas é sempre bom lembrar que somos independentes, sem vínculos com editoras ou programas de pós-graduação. O que nos alegra é que, desde o princípio, procuramos estimular o debate de Humanidades sem preconceitos, embora tomando como eixo central a Literatura. Não por acaso nos denominamos "uma revista de cultura e literatura". Agradeço aqui a todos que, direta ou indiretamente, contribuíram nesses anos com a revista!

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A leveza custa caro. É difícil. E às vezes apenas procrastina uma dor maior. Por isso eu gosto tanto dos islandeses do Múm: http://www.youtube.com/watch?v=VeaRDcdwrZg


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O IRON MAIDEN é minha madeleine proustiana. Uma parte de minha história adolescente passa como um filme em minha cabeça quando os caras começam a tocar. Eu nem sei se estou aqui onde me encontro ou se estou lá em Valença, no início dos anos 90, com alguns amigos que me são diletos até hoje.

Falo isso tudo do Iron Maiden sem fazer nenhum ajuizamento estético sobre a banda que hoje ouço muito pouco. A maior besteira do mundo é supor que só as grandes obras e os grandes mestres abalam profundamente a nossa vida.

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"Escrever as coisas tal como aconteceram é tornar-se escravo de sua própria memória, que é um elemento menor do processo criativo [...]. Os materiais são de fato extraídos da vida do autor, mas em última análise a criação é uma criatura independente [...]. A realidade é sempre mais forte que a imaginação humana. Além disso, a realidade pode se dar ao luxo de ser inacreditável, inexplicável, desproporcional. A obra criada, infelizmente, não tem esse direito." (Aharon Appelfeld)

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Há um bom tempo venho dizendo que o espaço de comentários de sites e blogs é o esgoto da notícia. Sob o pretexto de democratizar o debate, este espaço tem servido mesmo é para escroques e pusilânimes, escondidos sob a proteção do anonimato ou do perfil fake, despejarem ignorância, preconceito e grosseria. Lendo agora mesmo, no blog do Alfredo Werney, os comentários de anônimos a uma crítica que ele fez do filme "Cine Holliúdy" reforcei esta minha crença. Apenas um comentário, embora grosseiro, propõe uma leitura alternativa; o restante nem merece ser lido até o final. Me solidarizo com o Alfredo e com todas as pessoas que, sem ganharem um centavo, buscam impulsionar o debate cultural na rede e só ganham em troca as patadas de covardes que sequer têm a hombridade de mostrarem a cara. Discordar só é válido se houver bom senso e argumento - quem só sabe xingar está num nível infra-humano de convivência.