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sexta-feira, 17 de maio de 2013

Peões (Brasil, 2004), de Eduardo Coutinho


Eduardo Coutinho é o Balzac do cinema brasileiro, no sentido de que cada documentário seu é um fragmento de um imenso e bem tecido painel da humana comédia que vivemos, uma faceta do que somos. Há em Coutinho, não saberia dizer se conscientemente, um impulso ao mesmo tempo épico e ético que domina suas decisões como diretor. Épico, pela fome de mostrar; ético, pelo cuidado com o “como” mostrar: o Outro, em Coutinho, é quem deve falar. Já disse e repito aqui de novo: a arte de Coutinho é a arte de ouvir.

Arte de ouvir significa, entre outras coisas, cuidar para que não haja ruído, que por sua vez significa purificar a técnica. Neste sentido, Coutinho é um artista do menos, um artista da subtração. Assombra em Coutinho a limpidez, a espontaneidade: tudo é tão direto que parece fácil. Neste cinema sem ruídos, cinema em grau zero, o desaparecimento do efeito leva igualmente ao desaparecimento do defeito: as idéias de perfeição e beleza perdem o sentido, ou pelo menos são deslocadas para outro valor: a verdade. A verdade é que é bela e perfeita.

Peões (2004), direi logo de partida, é o mais fraco documentário do Eduardo Coutinho a que já assisti. Ele não foge inteiramente à descrição que fiz acima, mas nele a paixão do homem Coutinho, homem de esquerda, homem que admira o homem Luiz Inácio Lula da Silva, deixou o ruído da paixão falar alto. Não questiono aqui, é óbvio, a paixão em si do diretor – até porque, apesar dos senões, também eu tenho simpatia por Lula –, mas como este ardor rebaixa a faceta mais bela e inegociável de outros seus documentários: sua dimensão ética. A sensação que tive ao assistir o documentário foi a de ver um jogo de cartas marcadas, pois já sabia de antemão que os depoentes (todos ex-companheiros de Lula nas épicas greves operárias do ABC, entre o final da década de 70 e início da década de 80) iriam tecer loas ao Luiz Inácio.

Embora falhando em sua motivação profunda – porque, insisto, o fundamento da arte de Coutinho é ético (verdade), e não estético (beleza) –, Peões logra muitos acertos. Um desses acertos, talvez o maior deles, remete à escolha do “formato” do documentário, que dá um tratamento intimista para uma matéria épica, humanizando as figuras em vez de torná-las monumentos. Coutinho faz o documentário equilibrar de formar louvável memória coletiva e memória individual. Ninguém é reduzido a monstro, nem a super-homem... exceto Lula.

Ao final, só ao final, um depoente explica a Eduardo Coutinho e a nós o que é ser peão, aspecto que revela um traço singular do cinema de Coutinho: sua destemida abertura ao Outro, sua imersão aventureira pelo desconhecido, seu horror por fórmulas pré-concebidas que exorcizam o acaso. Em Peões, é forçoso admitir, restringiu-se este sentido de aventura.



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