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sábado, 2 de março de 2013

Rango (EUA, 2011), de Gore Verbinski


Rango é um camaleão domesticado que, por um acidente, é jogado no meio de uma terra inóspita, onde animaizinhos zoomorfizados (fazendeiros, pequenos comerciantes, justiceiros, mistificadores e profetas) resistem à escassez de água. Perdido, Rango terá de atravessar uma pista perigosa que, simbolicamente, representa um rito de passagem, uma prática de purgação dos amofinamentos que a civilização lhe trouxe. Acostumado a um espaço limitado, à comida fácil e tendo veleidades de artista, Rango passará por uma crise de identidade cuja chave de crescimento é a assunção plena de seu destino. Trata-se de um filme que, tendo como pano de fundo a oposição entre natureza e cultura, associa esta, como em Rousseau, à mentira e à simulação. Rango usa, inicialmente, seus dotes de ator para enganar os outros, mas, ao final, sem abdicar inteiramente de seu dom, recusa as máscaras sociais para assumir, com um forte halo existencialista, a dureza que o destino lhe reserva.

O diretor dessa bela animação, Gore Verbinski, o mesmo da horrenda trilogia Piratas do Caribe, não me deixou menos que boquiaberto. Rango é operístico, e em tudo bem orquestrado: imagem, som, roteiro e encenação convergem harmoniosamente na criação de um mundo altamente estilizado, em que o menor objeto ou sussurro tem sua funcionalidade. A profundidade de campo, muito explorada, destaca a solidão do protagonista num mundo bruto e indiferente; a luz, de um claro violento, acentua a aridez das paisagens desérticas; os ângulos insólitos reforçam as anomalias do mundo interior do protagonista; os toques surrealistas coroam o simbolismo da história sem incomodar pela inverossimilhança. A atenção dos realizadores não dispensa o mais reles detalhe, de uma gota de água aos detalhes sugestivos de uma pupila. Um cinema, sim, suntuoso, mas construído com mão de mestre, cada quadro minimamente pesquisado.

Como se não bastasse, Rango se arrisca no campo minado do pastiche pós-moderno, acumulando referências e revisitando clichês com muita ironia – mas, mesmo assim, não é nem um Shrek, com as inversões óbvias do fabulário tradicional, nem um desses filmes-de-cinéfilo pseudocult. O pastiche se estende à música de Hans Zimmer, linda homenagem às trilhas Ennio Morricone feitas para os spaghetti westerns altamente estilizados de Sérgio Leone, principal fonte de inspiração de Verbinski.

Depois de assistir a Rango, e ver a mitologia do cowboy tão bem retomada, e ver o pedagogismo e o moralismo pusilânime das animações-para-toda-família ser cuspida longe em prol de uma ética da virilidade (mas não machista), e ver uma saraivada de homenagens e alusões cinéfilas que, no entanto, antes ajudam que prejudicam a fluência da narrativa, a vontade que tive foi de revisitar os grandes westerns. Em Rango, a estilização e a eficácia simbólica da encenação que elevou o nome de Sergio Leone entre os grandes diretores do cinema são assustadoramente reencarnadas por Verbinski. Até o Homem Sem Nome,  célebre personagem de Clint Eastwood na Trilogia dos dólares, aparece (não vou estragar a surpresa dizendo como, mas me deliciei com o fundo mítico e a ironia da cena) destilando sua mística do dever e do destino, com seu usual rigor estóico, para o camaleãozinho perdido. Rango tem cheiro de Oscar.

[Texto escrito em junho de 2011]

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