Uma marca singular dos
picaretas, sejam deístas ou ateus, príncipes ou mendigos, estejam à direita ou
à esquerda, é a autoproclamação orgulhosa de uma impossível autonomia do self. Onde a subjetividade ruge ao vento sua solidão
heroica e gloriosa, ali está o picareta. No capitalista que conseguiu tudo com
o “suor do próprio trabalho”; no mendigo que berra não depender de ninguém no
mundo; no aluno que faz o trabalho em grupo sozinho para se gabar. O picareta
desconhece o que vem de graça, pela gratia,
ou diriam os não religiosos, pelo acaso. Tudo pra ele é fruto de manobras e
cálculos, toda vitória é fruto de uma decisão firme em seu propósito. A crença
na autonomia dos nossos desejos e na supremacia da vontade individual gera toda
variedade de picaretas – de profetas a estadistas, de intelectuais carreiristas
até almas ingênuas que se fiam com constrangedora fé nos manuais de autoajuda
mais rasteiros. O picareta não questiona se há algo errado na ordem do mundo (cosmos), na organização social em que
habita – ele quer apenas se adaptar e se dar bem. Assim, se a lei está a seu
favor, ele a usa com aquela cara-de-pau sutilmente irônica, aquele espírito de
isenção de quem diz: “Não posso fazer nada, a lei está a meu lado”. Se a lei
não está do seu lado, então é preciso burlá-la sem sujar as mãos. O que
significa: subir nas costas de alguém, ou jurar que está defendendo uma causa
nobre – Deus, a Família, o futuro do País, o Partido, a Moral, a Boa Educação,
a Ciência etc – ou, no limite, dizer que se não fizesse aquilo, outra pessoa o
faria, pois “o ser humano é assim mesmo, não adianta se iludir”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário