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quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

“Elegia de São Luís”: H. Dobal relê Gonçalves Dias


Elegia de São Luís

Indiferente ao movimento da vida,
um canto de sabiá
se despeja triste
sobre São Luís do Maranhão.
Canto, pranto, lamentação de sabiá
atravessando o dia e a noite,
atravessando o céu e a terra.

A passagem da lua,
a passagem das velas nos canais
que a maré transforma e retransforma,
a solidão das igrejas,
a ameaçada solidez destes sobrados,
nada pode vencer
a tristeza deste canto.

Este canto não vem
de uma palmeira invisível.
Vem da gaiola acima da escada
e corta a sala, o jardim, atinge a rua
onde os ônibus soluçam.
Mais ainda: atinge tudo isto
Que está sendo chamado a desaparecer.

(In: A cidade substituída)



A “Canção do Exílio”, do maranhense Gonçalves Dias, transforma-se, nessa releitura de Dobal, em elegia, canto de lamentação; o sabiá gonçalviano, um dos mais fortes símbolos do nacionalismo criados por nossa literatura, transmuda-se num sabiá solitário, apartado do povo, “indiferente ao movimento da vida”; no poeta maranhense, o sabiá canta numa palmeira: vive em harmonia com a natureza e bem pode simbolizar a relação do poeta (sabiá) como o seu chão (país). O eu-lírico gonçalviano pôde cantar, com feliz ingenuidade, os poderes da poesia e a comunhão com a pátria: o Brasil, à época do romantismo, precisava de mitos, gestados pela mente prodigiosa de seus escritores, que alimentassem o amor pátrio e nos singularizasse enquanto nação. No contexto em que se insere o eu-lírico dobalino, a situação é bem outra: o sabiá, desnaturalizado, deslocado, vive na prisão da gaiola e seu canto triste, como a elegia do poeta, parece não atingir ninguém: canto inútil porque protesto contra uma perda da memória coletiva que parece não fazer falta. Interessante notar, no poema dobalino, a ausência de pessoas; citam-se igrejas, sobrados, ônibus – elementos que naturalmente pressupõem a presença de seres humanos –, mas não se apresentam pessoas propriamente, o que reforça ainda mais a solidão do sabiá / poeta.

Octavio Paz avalia que o discurso poético, desde o final do século XVIII, tem se manifestado como rebelião; segundo Paz, “a poesia não é um gênero moderno; sua natureza profunda é hostil ou indiferente aos dogmas da modernidade: o progresso e a supervalorização do futuro”. O eu-lírico dobalino, de pendor conservador, rejeita os “dogmas da modernidade” apontados por Paz e deseja redirecionar as pessoas para a tradição, para a conservação da memória coletiva.

A “Elegia” de Dobal, assim, possibilita-nos pelo menos dois planos de compreensão. No primeiro plano, temos a denúncia da artificialização e da degradação dos bens públicos (a memória arquitetônica colonial de São Luís). No segundo plano, mais implícito, temos o tema do processo de isolamento do poeta, que não se comunica mais com o povo, não tem mais uma função social definida. Praticamente todo o livro A cidade Substituída insistirá nessas duas idéias. E, para compreendê-las mais a fundo, precisamos nos aproximar da teoria da experiência de Walter Benjamin.

Benjamin observou que o modo de produção capitalista enfraqueceu as atividades ligadas à Erfarhung (experiência coletiva) em detrimento de outro tipo de experiência, a Erlebnis ou experiência vivida, típica do indivíduo solitário. Esse arrefecimento de uma memória e uma experiência comuns resultou numa espécie de culto da novidade, que levou o pensador germânico, no ensaio “Experiência e pobreza”, a perguntar-se: “qual o valor de nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós ?” É exatamente nesse ponto – em que a tradição não nos provém de modelos seguros porque o que vale é o que é novidade – que se consolidam a informação jornalística (antípoda da experiência e da sabedoria) e o romance (narrativa de busca de um sentido e não depositório de experiências partilháveis); é aqui também que o poeta enquanto guardião da memória (papel de Dobal em A cidade substituída, e não só ali) sente o peso de sua cisão em relação à comunidade. E troca, inevitavelmente, a “canção” pela “elegia”.  

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