Elegia de São Luís
Indiferente ao movimento da vida,
um canto de sabiá
se despeja triste
sobre São Luís do Maranhão.
Canto, pranto, lamentação de sabiá
atravessando o dia e a noite,
atravessando o céu e a terra.
A passagem da lua,
a passagem das velas nos canais
que a maré transforma e retransforma,
a solidão das igrejas,
a ameaçada solidez destes sobrados,
nada pode vencer
a tristeza deste canto.
Este canto não vem
de uma palmeira invisível.
Vem da gaiola acima da escada
e corta a sala, o jardim, atinge a rua
onde os ônibus soluçam.
Mais ainda: atinge tudo isto
Que está sendo chamado a desaparecer.
(In: A
cidade substituída)
A “Canção do Exílio”, do maranhense Gonçalves Dias,
transforma-se, nessa releitura de Dobal, em elegia, canto de lamentação; o
sabiá gonçalviano, um dos mais fortes símbolos do nacionalismo criados por
nossa literatura, transmuda-se num sabiá solitário, apartado do povo,
“indiferente ao movimento da vida”; no poeta maranhense, o sabiá canta numa
palmeira: vive em harmonia com a natureza e bem pode simbolizar a relação do
poeta (sabiá) como o seu chão (país). O eu-lírico gonçalviano pôde cantar, com
feliz ingenuidade, os poderes da poesia e a comunhão com a pátria: o Brasil, à
época do romantismo, precisava de mitos, gestados pela mente prodigiosa de seus
escritores, que alimentassem o amor pátrio e nos singularizasse enquanto nação.
No contexto em que se insere o eu-lírico dobalino, a situação é bem outra: o
sabiá, desnaturalizado, deslocado, vive na prisão da gaiola e seu canto triste,
como a elegia do poeta, parece não atingir ninguém: canto inútil porque
protesto contra uma perda da memória coletiva que parece não fazer falta.
Interessante notar, no poema dobalino, a ausência de pessoas; citam-se igrejas,
sobrados, ônibus – elementos que naturalmente pressupõem a presença de seres
humanos –, mas não se apresentam pessoas propriamente, o que reforça ainda mais
a solidão do sabiá / poeta.
Octavio Paz avalia que o discurso poético, desde o
final do século XVIII, tem se manifestado como rebelião; segundo Paz, “a poesia não é um gênero moderno; sua
natureza profunda é hostil ou indiferente aos dogmas da modernidade: o
progresso e a supervalorização do futuro”. O eu-lírico dobalino, de pendor
conservador, rejeita os “dogmas da modernidade” apontados por Paz e deseja
redirecionar as pessoas para a tradição, para a conservação da memória coletiva.
A “Elegia” de Dobal, assim, possibilita-nos pelo menos
dois planos de compreensão. No primeiro plano, temos a denúncia da
artificialização e da degradação dos bens públicos (a memória arquitetônica
colonial de São Luís). No segundo plano, mais implícito, temos o tema do processo
de isolamento do poeta, que não se comunica mais com o povo, não tem mais uma
função social definida. Praticamente todo o livro A cidade Substituída insistirá nessas duas idéias. E, para
compreendê-las mais a fundo, precisamos nos aproximar da teoria da experiência
de Walter Benjamin.
Benjamin
observou que o modo de produção capitalista enfraqueceu as atividades ligadas à
Erfarhung (experiência coletiva) em
detrimento de outro tipo de experiência, a Erlebnis
ou experiência vivida, típica do indivíduo solitário. Esse arrefecimento de uma
memória e uma experiência comuns resultou numa espécie de culto da novidade,
que levou o pensador germânico, no ensaio “Experiência e pobreza”, a
perguntar-se: “qual o valor de nosso patrimônio cultural, se a experiência não
mais o vincula a nós ?” É exatamente nesse ponto – em que a tradição não nos
provém de modelos seguros porque o que vale é o que é novidade – que se
consolidam a informação jornalística (antípoda da experiência e da sabedoria) e
o romance (narrativa de busca de um sentido e não depositório de experiências
partilháveis); é aqui também que o poeta enquanto guardião da memória (papel de
Dobal em A cidade substituída, e não
só ali) sente o peso de sua cisão em relação à comunidade. E troca,
inevitavelmente, a “canção” pela “elegia”.
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