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quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

“La nadería de la personalidad”:reflexão pioneira de Borges sobre a estética moderna


A despersonalização é um dos traços mais marcantes da estética literária moderna, pós-baudelaireana. Em vez da identificação do autor com suas criações (personagens, na prosa; eu lírico, na poesia), a literatura moderna se pauta numa gama de critérios cujo ponto comum é a negação da retórica afetiva romântica e sua entronização do eu: fala-se em distanciamento (Brecht), em fuga da emoção e da personalidade (Eliot), em fingimento e construção de heterônimos (Pessoa), em polifonia (Mikhail Bakhtin), em morte do autor (Barthes).

Jorge Luis Borges, desde suas primeiras intervenções teóricas, na segunda década do século XX, alinhou-se a esta perspectiva de uma maneira sumamente radical, pois que negou não apenas os poderes demiúrgicos do autor, mas até mesmo a consistência ontológica do sujeito. Esta destruição da categoria sujeito tem, em Borges, múltiplos pontos de referência, oriundos seja de fontes filosóficas (Hume, Berkeley, Schopenhauer), seja de tradições religiosas orientais (o Budismo), seja de fontes propriamente literárias (Mallarmé, Whitman, Macedônio Fernández). Alusões à idéia de sujeito como ilusão atravessam praticamente toda a obra borgeana, dos anos 20 aos anos 80 do século XX, e têm como marco inaugural um texto de juventude (jamais traduzido no Brasil), fundamental para entender-se o projeto estético de Borges, intitulado “La nadería de la personalidad”. Este texto faz parte de um dos três livros de ensaios que ele, em 1977, expurgou de suas obras completas: Inquisiciones (1925).

Escrito numa linguagem empolada, que Borges abominaria depois, “La nadería de la personalidad” defende a tese, certamente fruto das leituras de Hume e Berkeley, que a unidade do eu é inexistente: “No hay tal yo de conjunto. Qualquier actualidad de la vida es enteriza y suficiente”. Quem afirma que a identidade pessoal é uma possessão primitiva de “algún erario de recuerdos” supõe uma durabilidade improvável da memória. Isto sem contar com o problema a seleção: por que alguns instantes se estampam em nossa memória e outros não?

Com isso, Borges não pretende fazer desabar a segurança com que nós diariamente dizemos eu e afirmarmos a consciência do nosso ser. Essa dimensão pragmática – ele não diz, mas devemos supor – é uma ilusão necessária, basilar para enfrentarmos as situações cotidianas. Todavia, bem analisado, nem todas as nossas convicções se ajustam à dicotomia eu e não-eu, nem tal dicotomia é constante. A convicção que me faz tormar-me como uma individualidade, argumenta Borges, é em tudo idêntica à de qualquer outro ser humano.

Dentro os fatores que desmentem a unidade do eu ressalte-se o nosso passado. Para Borges, qualquer um que procure ver-se nos “espejos del pasado”  se sentirá um forasteiro (Meu Deus, isso era eu? Nossa, eu fazia isto?!)

Em busca de corroborar suas intuições, Borges cita fontes da cabala (Agrippa de Nettesheim), da literatura (Torres Villarroel), da filosofia (Schopenhauer, mas não Hume e Berkeley) e também o budismo. Tudo isto não com um propósito exatamente filosófico, mas a fim de erguer a proposta de uma estética não psicologista. Nas palavras de Borges,

“O século passado, em suas manifestações estéticas, foi radicalmente subjetivo. Seus escritores antes preponderam a patentear sua personalidade que a levantar uma obra; sentença que também é aplicável a quem hoje, em turba caudalosa e aplaudida, aproveita os fáceis rescaldos de suas fogueiras” [de “La nadería de la personalidad”, trad. minha]
        
Essa estética expressivista, dos “idólatras de seu eu”, é o antípoda da “nadería de la personalidad” que Borges aponta. Contra esta estética de inclinação romântica Borges propõe outra, de pender clássico, como ele mesmo confessa, e que se pauta na devotada atenção às coisas. Whitman e Picasso seriam os propugnadores dessa estética anti-romântica, segundo Borges.

Nunca é demais lembrar que Borges publicara “La nadería de la personalidad” em 1925, no livro Inquisiciones, quando contava 25 anos. Pouco lembrado, este texto constitui um marco da reflexão sobre a modernidade literária na América Latina e um forte vislumbre das futuras idéias estéticas de Borges, intelectualizantes e de pendor fortemente anti-expressionista.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A doença de Cosme

‎"Tive um pesadelo! Sonhei que era inteligente e as pessoas me responsabilizavam pelos meus atos". Fala de Cosme, personagem do desenho Os padrinhos mágicos. É difícil demais lidar, dia a dia, nos mais variados ambientes, com crianções de bigode que OPTAM pela burrice para fugir das responsabilidades. Nelson Rodrigues já repisava este assunto insistentemente. E a situação piorou, caro Nelson.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

“Elegia de São Luís”: H. Dobal relê Gonçalves Dias


Elegia de São Luís

Indiferente ao movimento da vida,
um canto de sabiá
se despeja triste
sobre São Luís do Maranhão.
Canto, pranto, lamentação de sabiá
atravessando o dia e a noite,
atravessando o céu e a terra.

A passagem da lua,
a passagem das velas nos canais
que a maré transforma e retransforma,
a solidão das igrejas,
a ameaçada solidez destes sobrados,
nada pode vencer
a tristeza deste canto.

Este canto não vem
de uma palmeira invisível.
Vem da gaiola acima da escada
e corta a sala, o jardim, atinge a rua
onde os ônibus soluçam.
Mais ainda: atinge tudo isto
Que está sendo chamado a desaparecer.

(In: A cidade substituída)



A “Canção do Exílio”, do maranhense Gonçalves Dias, transforma-se, nessa releitura de Dobal, em elegia, canto de lamentação; o sabiá gonçalviano, um dos mais fortes símbolos do nacionalismo criados por nossa literatura, transmuda-se num sabiá solitário, apartado do povo, “indiferente ao movimento da vida”; no poeta maranhense, o sabiá canta numa palmeira: vive em harmonia com a natureza e bem pode simbolizar a relação do poeta (sabiá) como o seu chão (país). O eu-lírico gonçalviano pôde cantar, com feliz ingenuidade, os poderes da poesia e a comunhão com a pátria: o Brasil, à época do romantismo, precisava de mitos, gestados pela mente prodigiosa de seus escritores, que alimentassem o amor pátrio e nos singularizasse enquanto nação. No contexto em que se insere o eu-lírico dobalino, a situação é bem outra: o sabiá, desnaturalizado, deslocado, vive na prisão da gaiola e seu canto triste, como a elegia do poeta, parece não atingir ninguém: canto inútil porque protesto contra uma perda da memória coletiva que parece não fazer falta. Interessante notar, no poema dobalino, a ausência de pessoas; citam-se igrejas, sobrados, ônibus – elementos que naturalmente pressupõem a presença de seres humanos –, mas não se apresentam pessoas propriamente, o que reforça ainda mais a solidão do sabiá / poeta.

Octavio Paz avalia que o discurso poético, desde o final do século XVIII, tem se manifestado como rebelião; segundo Paz, “a poesia não é um gênero moderno; sua natureza profunda é hostil ou indiferente aos dogmas da modernidade: o progresso e a supervalorização do futuro”. O eu-lírico dobalino, de pendor conservador, rejeita os “dogmas da modernidade” apontados por Paz e deseja redirecionar as pessoas para a tradição, para a conservação da memória coletiva.

A “Elegia” de Dobal, assim, possibilita-nos pelo menos dois planos de compreensão. No primeiro plano, temos a denúncia da artificialização e da degradação dos bens públicos (a memória arquitetônica colonial de São Luís). No segundo plano, mais implícito, temos o tema do processo de isolamento do poeta, que não se comunica mais com o povo, não tem mais uma função social definida. Praticamente todo o livro A cidade Substituída insistirá nessas duas idéias. E, para compreendê-las mais a fundo, precisamos nos aproximar da teoria da experiência de Walter Benjamin.

Benjamin observou que o modo de produção capitalista enfraqueceu as atividades ligadas à Erfarhung (experiência coletiva) em detrimento de outro tipo de experiência, a Erlebnis ou experiência vivida, típica do indivíduo solitário. Esse arrefecimento de uma memória e uma experiência comuns resultou numa espécie de culto da novidade, que levou o pensador germânico, no ensaio “Experiência e pobreza”, a perguntar-se: “qual o valor de nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós ?” É exatamente nesse ponto – em que a tradição não nos provém de modelos seguros porque o que vale é o que é novidade – que se consolidam a informação jornalística (antípoda da experiência e da sabedoria) e o romance (narrativa de busca de um sentido e não depositório de experiências partilháveis); é aqui também que o poeta enquanto guardião da memória (papel de Dobal em A cidade substituída, e não só ali) sente o peso de sua cisão em relação à comunidade. E troca, inevitavelmente, a “canção” pela “elegia”.  

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Facebook e BBB


A diferença entre fenômenos como Facebook e BBB é de grau e não de gênero.  Ambos são frutos do mesmo Zeitgeist. Portanto, criticar aquele programa global via Face sem fazer uma séria autocrítica é inútil e pouco inteligente. Há pessoas que não vão ao banheiro sem avisar pelo Face (e pelo Twitter) e mesmo assim descem o pau nos brothers. Dos mais coerentes seria preciso esperar que simplesmente deletassem seu Face. Dos menos, que fizessem uma autocrítica responsável e evitassem a antipropaganda barulhenta e moralista. Não estou tentando vetar a crítica ao programa global, mas reconhecendo que crítica sem autocrítica é uma prática cínica.