A despersonalização é um dos traços mais
marcantes da estética literária moderna, pós-baudelaireana. Em vez da
identificação do autor com suas criações (personagens, na prosa; eu lírico, na
poesia), a literatura moderna se pauta numa gama de critérios cujo ponto comum
é a negação da retórica afetiva romântica e sua entronização do eu: fala-se em
distanciamento (Brecht), em fuga da emoção e da personalidade (Eliot), em
fingimento e construção de heterônimos (Pessoa), em polifonia (Mikhail
Bakhtin), em morte do autor (Barthes).
Jorge Luis Borges, desde suas primeiras
intervenções teóricas, na segunda década do século XX, alinhou-se a esta
perspectiva de uma maneira sumamente radical, pois que negou não apenas os
poderes demiúrgicos do autor, mas até mesmo a consistência ontológica do
sujeito. Esta destruição da categoria sujeito tem, em Borges, múltiplos pontos
de referência, oriundos seja de fontes filosóficas (Hume, Berkeley,
Schopenhauer), seja de tradições religiosas orientais (o Budismo), seja de
fontes propriamente literárias (Mallarmé, Whitman, Macedônio Fernández).
Alusões à idéia de sujeito como ilusão atravessam praticamente toda a obra
borgeana, dos anos 20 aos anos 80 do século XX, e têm como marco inaugural um
texto de juventude (jamais traduzido no Brasil), fundamental para entender-se o
projeto estético de Borges, intitulado “La nadería de la personalidad”. Este
texto faz parte de um dos três livros de ensaios que ele, em 1977, expurgou de
suas obras completas: Inquisiciones
(1925).
Escrito numa linguagem empolada, que Borges
abominaria depois, “La nadería de la personalidad” defende a tese, certamente
fruto das leituras de Hume e Berkeley, que a unidade do eu é inexistente: “No
hay tal yo de conjunto. Qualquier actualidad de la vida es enteriza y
suficiente”. Quem afirma que a identidade pessoal é uma possessão primitiva de
“algún erario de recuerdos” supõe uma durabilidade improvável da memória. Isto
sem contar com o problema a seleção: por que alguns instantes se estampam em
nossa memória e outros não?
Com isso, Borges não pretende fazer desabar a
segurança com que nós diariamente dizemos eu e afirmarmos a consciência do
nosso ser. Essa dimensão pragmática – ele não diz, mas devemos supor – é uma
ilusão necessária, basilar para enfrentarmos as situações cotidianas. Todavia,
bem analisado, nem todas as nossas convicções se ajustam à dicotomia eu e
não-eu, nem tal dicotomia é constante. A convicção que me faz tormar-me como
uma individualidade, argumenta Borges, é em tudo idêntica à de qualquer outro
ser humano.
Dentro os fatores que desmentem a unidade do
eu ressalte-se o nosso passado. Para Borges, qualquer um que procure ver-se nos
“espejos del pasado” se sentirá um
forasteiro (Meu Deus, isso era eu? Nossa, eu fazia isto?!)
Em busca de corroborar suas intuições, Borges
cita fontes da cabala (Agrippa de Nettesheim), da literatura (Torres Villarroel),
da filosofia (Schopenhauer, mas não Hume e Berkeley) e também o budismo. Tudo
isto não com um propósito exatamente filosófico, mas a fim de erguer a proposta
de uma estética não psicologista. Nas palavras de Borges,
“O século passado, em
suas manifestações estéticas, foi radicalmente subjetivo. Seus escritores antes
preponderam a patentear sua personalidade que a levantar uma obra; sentença que
também é aplicável a quem hoje, em turba caudalosa e aplaudida, aproveita os
fáceis rescaldos de suas fogueiras” [de “La nadería de la personalidad”, trad.
minha]
Essa estética expressivista, dos “idólatras
de seu eu”, é o antípoda da “nadería de la personalidad” que Borges aponta.
Contra esta estética de inclinação romântica Borges propõe outra, de pender
clássico, como ele mesmo confessa, e que se pauta na devotada atenção às
coisas. Whitman e Picasso seriam os propugnadores dessa estética
anti-romântica, segundo Borges.
Nunca é demais lembrar que Borges publicara
“La nadería de la personalidad” em 1925, no livro Inquisiciones, quando contava 25 anos. Pouco lembrado, este texto
constitui um marco da reflexão sobre a modernidade literária na América Latina
e um forte vislumbre das futuras idéias estéticas de Borges, intelectualizantes
e de pendor fortemente anti-expressionista.