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quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Manoel de Oliveira, 105 anos dedicados ao cinema




[É um texto antigo e meramente informativo. Não tenho certeza, mas suponho que o escrevi para uma mostra de cinema na Casa da Cultura de Teresina e o publiquei no Diário do Povo. Republico-o aqui como uma singela homenagem aos 105 anos que o grande diretor completa hoje]

O português Manoel de Oliveira (Porto, 1908) é um dos mais aclamados e influentes diretores do cenário europeu, contando entre seus admiradores Wim Wenders, Jean-Luc Godard e Clint Eastwood. Recentemente, em 2008, recebeu das mãos de Eastwood, em Cannes, “Palma de Ouro” pelo conjunto de sua obra. É o mais longevo diretor da história do cinema, tendo completado 100 anos trabalhando ativamente. É ainda o único cineasta a ter iniciado sua carreira no período do cinema mudo e a manter-se ativo no XXI.

A trajetória de Manoel de Oliveira no cinema se inicia quando, aos vinte anos de idade, ingressou na escola de atores de Rino Lupo, cineasta italiano radicado em Porto, sua terra natal. Em 1933, participou de “A Canção de Lisboa” (1933), de Cottinelli Telmo, o segundo filme sonorizado de Portugal. Em 1942, lançou-se no cinema de ficção com “Aniki-Bobó”. Antes desta data, fizera documentários, muitos dos quais obtiveram repercussão internacional. Por um espaço de tempo, por conta dos fracassos comerciais dos seus filmes, decidiu afastar-se da sétima arte e dedicar-se aos negócios da família. Porém, em 1956, voltou com “O Pintor e a Cidade”. Em 1963, realizou “O Acto da Primavera”, misto de documentário e ficção que constitui um dos pontos altos de sua carreira e do cinema mundial. Sua fase mais fértil, quantitativamente falando, inicia-se na década de 1990, quando passa a realizar praticamente um filme por ano, alguns deles obras-primas da sétima arte.

Seu estilo é marcado por uma preocupação com todos os estratos sígnicos do discurso fílmico. Como observou o crítico Ruy Gardnier, o cinema, para Manoel de Oliveira, é uma “arte inclusiva (catalisadora de todas as artes) e perspectiva (faz refletir sobre todas elas e sobre si própria)”. Como na maior parte do bom cinema europeu, suas produções apresentam diálogos de elevado nível sem, no entanto, parecerem demasiado didáticos – não por acaso, sua roteirista predileta é Agustina Bessa-Luis, uma das grandes prosadoras da literatura de língua portuguesa do século XX. Seus planos são lentos e estudados, de grande exatidão pictórica e forte carga simbólica; sob a câmera estática, a gestualização teatral dos atores convida-nos a uma reflexão sobre a semiótica dos gestos. Estes pontos – que fazem o deleite do espectador intelectualmente mais exigente e versado em artes plásticas – acabam algumas vezes causando estranhamento àqueles que estão mais acostumados ao cinema americano e sua montagem frenética. Assim, é preciso um esforço reflexivo para entender o sentido ritual e simbólico das imagens captadas e recriadas no cinema de Manoel de Oliveira.

Sob o influxo de grandes artistas portugueses, em especial de Camões e Fernando Pessoa, Manoel de Oliveira faz convergirem mito e história em seus trabalhos. De sólida formação humanista e avesso à moda multicultural, Oliveira aposta no cinema como fator de integração cultural (daí o plurilinguismo comum em seus filmes, seus atores de várias nacionalidades e suas referências a clássicos universais de variados países) e enunciador de discursos universais.

Se na pós-modernidade o bombardeio de imagens veiculadas na mídia nos incita cotidianamente a uma recepção semi-distraída, de apreciação sinestésica e irrefletida, o cinema de Manoel de Oliveira deriva grande parte de seu poder transformador de um desafio que nos lança: reatar uma relação reflexiva com a imagem, contemplando seu apuro plástico e buscando compreender os novos efeitos de sentido que se produzem quando do seu contato com a palavra e com a música.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Caímos todos



Sim, caímos todos. Teses gerais sobre psicologia das massas e prognósticos sobre o que ocorrerá na Copa, neste momento, ajudam, mas muito pouco. O fato é que para grande parte dos torcedores (dentro e fora do estádio) não havia pessoas machucadas, mas sim vascaínos e atleticanos. Outro fato é que a partida reiniciou e muita gente continuou lá torcendo, como se nada de trágico tivesse ocorrido. É possível elaborar, mais ou menos nos moldes do pensiero debole de Vattimo, algo como uma política de enfraquecimento das convicções torcedoras ou a única coisa a fazer é erigir grades mais fortes e reforçar o contingente policial nos estádios?

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Dos livros que não lemos



A pletora de livros que não lemos e que descansam ao nosso lado, em nossa biblioteca, ou em alguma livraria, à nossa espera. Isto deve ser para nós motivo de júbilo e não de desespero. (O único desespero real é o acúmulo irracional, porque compulsivo, de livros; ou, como alertava Schopenhauer, acreditarmos que a simples posse material de um livro nos dará acesso ao seu conteúdo). O desejo sincero de ler tudo o que nos interessa – mesmo que esse “tudo” seja superior à capacidade de uma vida – enche nossa vida de esperança, acena para um futuro de agradáveis encontros, nos segreda a possibilidade constante e real de uma virada em nossa existência. Quem tem muita coisa para ler não tem pressa de morrer. Olho para a estante à minha frente e vejo os dois volumes de “A Cidade de Deus”, de Santo Agostinho. Eu sei que preciso lê-los um dia. Talvez nas próximas férias, quem sabe. Aqueles dois volumes são dois faróis de esperança em minha vida... e se, lendo-os, eu me tornar outro, alguém melhor? Nem todas as promessas e expectativas positivas que compactuamos com a leitura se cumprem. Isso é óbvio e não deve nos entristecer ou desestimular. Uma esperança não cumprida que, de qualquer forma, nos move em busca do autocultivo já não pode ser creditada como tempo perdido; além disso, um grande livro que nos decepciona hoje pode nos ser fundamental amanhã – quase todo leitor tem uma história dessa natureza para contar. Os livros que ainda não lemos, mas que acreditamos com sinceridade que precisamos ler, contêm em potencial a nós mesmos numa versão, seja em que ponto for, melhorada.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Luiz Costa Lima: “Frestas: a teorização em um país periférico” (RJ, Contrapondo/PUC, 2013)


Recebi ontem o novo livro do mestre Luiz Costa Lima: “Frestas: a teorização em um país periférico” (RJ, Contrapondo/PUC, 2013). Pelo que eu pude vislumbrar numa rápida olhada, o livro cumpre quatro desígnios: é um testamento biográfico de uma trajetória ímpar, uma súmula dos temas que obsedaram o autor em sua trajetória intelectual (“mímesis” e “controle do imaginário”), uma reflexão nada otimista sobre o sistema intelectual brasileiro e – a parte mais importante a meu ver – um avanço na teorização do estatuto da ficção: Costa Lima extrapola o âmbito propriamente literário para refletir sobre o funcionamento da ficção no cotidiano. Desdobra, assim, aos nossos olhos o conceito de “ficção externa”, já aludido na obra anterior – “A ficção e o poema” (2012). Já comecei a ler a obra e breve espero escrever sobre ela. Fica, de antemão, minha sugestão de leitura aos colegas da área!



quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Retalhos [4]: Rei do camarote, homem emocional, empatite etc


# 1

Sobre o REI DO CAMAROTE, duas observações: 1) Como supostamente falou Borges, "o luxo é a forma mais dispendiosa da vulgaridade"; 2) Haja ressentimento coletivo! Ver gente que só não é tão vulgar como o "rei" por não ter recursos a pregar lições de humildade e bom senso é de embrulhar o estômago!

# 2

“Cada período da história tem seu tipo humano ideal. A sociedade medieval conheceu o cavaleiro valoroso e cortês. O Renascimento inventou o homem da corte, il cortegiano, mescla harmoniosa de decoro, elegância, virtude e fidelidade ao príncipe. O século XVII teve o homem de sociedade, o século  XVIII, o filósofo esclarecido, e o século XIX exaltou o empresário audacioso, o ‘burguês conquistador’. Qual é, em nossa época de individualismo extremo, o tipo humano ideal? É o ser que cultua a emoção, o homem emocional, o Homo sentiens.
(...)
O ideal do homem emocional é acompanhado por uma exigência de autenticidade. O indivíduo só é ele mesmo, enuncia esse ideal, a partir do momento em que pode sentir e exprimir as emoções que nos agitam a alma.
(...)
Com essa exigência de autenticidade articula-se uma filosofia antiintelectualista, que está em plena ressonância com o espírito de nossos tempos. O culto da emoção inverte a escala habitual das faculdades da alma. Faz com que a celebridade desça do seu pedestal. A existência realmente humana, segundo ele, não é a que nos leva à intelectualidade, mas a que conduz ao sensório, ao primitivismo dos sentidos.”
(Michel Lacroix, “O culto da emoção”, 2006, p. 37-38)

# 3

Amigos e amigas que compram no Estante Virtual! EVITEM comprar pela LIVRARIA PAPIRUS SEBO, de Curitiba. Comprei o livro "Destino e Identidade", de Hubert Lepargneur, no início de setembro e até hoje nada! Começaram culpando os Correios e agora sequer me respondem. Compro no Estante Virtual desde 2006, já fui até vendedor por lá e nunca isso havia me acontecido. A LIVRARIA PAPIRUS SEBO NÃO É SÉRIA!

# 4


Posso me esquecer de muitas coisas, mas jamais da primeira camisa do Corinthians que eu ganhei. Em meados da década de 80, meu amigo e parente Manoelpereira veio de São Paulo para Valença-PI com uma Kalunga-Topper dessas e, ao saber que eu era corinthiano, me presenteou com ela. Não sei se em toda minha vida cheguei a ganhar um presente melhor. Até hoje a simplicidade do modelo da Kalunga-Topper anos 80 me fascina: é a minha preferida de todos os tempos. Minha primeira namorada acho que se chamava Leda, não lembro bem. Mas da primeira camisa do Corinthians eu nunca me esquecerei.

# 5

30 milhões de brasileiros estão sofrendo de uma doença chamada EMPATITE. Os principais sintomas desse mal são o tédio, a apatia, o sono frequente e o desapego ao time do coração.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Retalhos [3]


"A Razão do Poema", de José Guilherme Merquior, acaba de ser relançado pela É Realizações. Fiz um posfácio para esta nova edição - "A razão poética segundo José Guilherme Merquior" - explorando basicamente dois pontos: a ligação daquele livro com a obra posterior de Merquior e os valores que guiam as escolhas e os julgamentos do autor nos ensaios críticos e analíticos ali contidos. Um dos poucos livros sobre poesia, escrito por um brasileiro, que podemos qualificar de clássico imprescindível.


*

DE UM DIÁLOGO COM MEU FILHO

-Aquela parte do livro que a gente pula.
- Qual, Icaro?!
- O prefácio.

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E em meio às habituais - e não raras vezes, justas - contestações ao Prêmio Jabuti, tomo ciência de que meu mestre LUIZ COSTA LIMA conquistou um justíssimo primeiro lugar na categoria "Teoria e crítica literária" com o seu A FICÇÃO E O POEMA. Tive a honra de ser um dos primeiros a comentar brevemente aquela obra e fazer uma rápida entrevista com seu autor, na dEsEnrEdoS. Quem desejar re/ler, eis o link: http://desenredos.dominiotemporario.com/doc/15-ent-LCostaLima.pdf

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Descobrir que importamos pouco, e para bem poucas pessoas, é desconfortante no princípio e uma alegria duradoura quando refletimos mais a fundo. Como disse um filósofo, quem ama demasiado a humanidade se esquece do homem concreto. Quem diz que tem 500 amigos é provável que tenha de fato 1 ou nenhum; quem diz que tem 3 é bem capaz de ter realmente 3 amigos. Quando essa descoberta de nossa pouca importância se dá num contexto de fé autêntica, alegria torna-se mesmo uma palavra insuficiente, imprecisa: talvez devêssemos falar em graça. Falta bom senso e maturidade - acima disso, falta fé - em quem quer ser marcante a qualquer custo e para um monte de pessoas. Raras são as celebridades sem pés de barro e os populares sem laivos de fascismo.



segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Santa Teresa d'Ávila, padroeira dos professores


Hoje é o dia dos professores, cuja padroeira é Santa Teresa d’Ávila, a grande mística espanhola do século XVI e, para mim, a maior escritora de seu idioma. A respeito da grandeza e da significação cultural de Teresa d’Ávila, Carpeaux escreveu uma belíssima síntese no artigo “A lição de uma santa” (http://www.rainhamaria.com.br/Pagina/11267/Artigo-de-Otto-Maria-Carpeaux-A-licao-de-uma-Santa). Sua obra “O castelo interior” é a que mais recomendo: está sem dúvida entre o que de melhor e mais profundo produziu a humanidade em qualquer época e lugar. Em 2009, traduzi dois poemas da santa para a dEsEnrEdoS: http://desenredos.dominiotemporario.com/doc/02_traducao_-_teresa_davila_-_wanderson.pdf. Próximo ano virá à luz, pelas Edições Nephelibata, um pequeno volume de poemas dela e de Juan de La Cruz traduzidos por mim.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Retalhos [2]






Tá certo, tudo bem: toda seleção é questionável e pode ser que bons e ótimos poemas tenham ficado de fora (lembro pelo menos de um do Torquato e outro do Leminski melhores que os selecionados). Mesmo assim me espanta a debilidade dos 10 poemas escolhidos - a imaginação rasteira, o nível cognitivo e o domínio linguístico ginasianos, a pobreza experiencial e a secura espiritual. Eu não tenho dúvidas de que tomada em seu conjunto, desconsiderando portanto esta ou aquela contribuição individual, a Poesia Marginal foi a pior merda que aconteceu à poesia brasileira no século XX

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"Causou-me sempre uma certa angústia pensar que todas as línguas se limitam a meia dúzia ou uma dúzia talvez de palavras para nomear tudo o que uma pessoa pode sentir por outra, pode pretender de outra. Enquanto que os vocabulários da agricultura, da pecuária, da caça, da guerra, dos jogos são prolixos, minuciosos, inesgotáveis, o da convivência pessoal é incrivelmente tosco. E como a língua fornece a pauta da primeira interpretação da vida, a prisão linguística obstrui a liberdade das relações pessoais. Não sabemos bem o que pretendemos de cada pessoa - e de fato não o pretendemos e não o conseguimos - porque não temos palavras com que o nomear" (JULIÁN MARÍAS, "Antropologia metafísica", p. 235-236)


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O Facebook é o lugar inautêntico onde as pessoas mais clamam por autenticidade. Não suporto mais esse lengua-lengua de 'seja você mesmo e viva feliz'. Primeiro, é uma grande besteira esse papo de ser feliz; quem cai nessa vive geralmente mentindo para si e para os outros, levando bofetada da vida e fingindo que está sendo beijada. Segundo, ser você mesmo custa caro: a autenticidade raramente é premiada. Se você quer ser você mesmo, ainda que seja uma pessoa polida e compreensiva, prepara-se para as porradas do mundo!

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“Trazendo o texto para a realidade...”. De cada dez vezes que ouço esta frase, em nove delas a pessoa quer mesmo é recusar o esforço interpretativo e ficar no seu mundinho particular. Pura negação da alteridade.

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“A vida é um combate cotidiano contra a estupidez própria” (Nícolas Gómez Dávila).

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Olhos de serpente (Dangerous game / Snake eyes, EUA, 1994), de Abel Ferrara


Os personagens de Abel Ferrara encontram-se na encruzilhada entre o vício e “o salto para a fé” (Kierkegaard). Não há espaço, no mundo de Ferrara, para outro tipo de gente senão o libertino e o convertido (ou o libertino a caminho da conversão). Trata-se, portanto, de um mundo movido pelo excesso, um mundo situado à beira de um apocalipse, onde a medida do bom senso não tem vez. Se os personagens vivem a danação, o estilo lhes faz jus: Ferrara é rigoroso, elabora com cuidado a encenação, mas faz isto desprezando olimpicamente a tomada rara e o efeito belo. Quando a beleza aparece, aparece submetida à idéia. Religioso, mas também trágico, Ferrara não contempla, não poetiza. Em vez do plano-sequência “espiritualizado” de Tarkovski, a câmera de Ferrara treme, tateia, alucina. 

Olhos de serpente (1994) está longe de equiparar os melhores filmes de Ferrara (O Rei de Nova York, Vício Frenético, Maria), mas representa com muita dignidade a insistente imersão de Ferrara nas entranhas do homem em danação, dos degradados carcomidos de culpa. Eddie (Harvey Keitel) é um cineasta que está filmando uma história a la Bergman sobre um casal em crise. Sua dupla de atores é formada por Francis (James Russo) e Sarah (Madonna, provando ser atriz de primeiro time). No filme dirigido por Eddie, o conflito básico é gerado pela incompatibilidade de gênios entre Sarah, recém convertida, e Francis, que não só continua na “bagaceira” como também não suporta a nova vida de Sarah. Estamos num palco que Ferrara conhece bem: o do destino humano dividido entre danação e salvação num mundo regido pelo mal.

Como no conto “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, de Jorge Luis Borges, a ficção (encenada no filme de Eddie) começa a envenenar a realidade, e o cotidiano dos protagonistas do filme e também o do diretor começa a desabar. Francis é a primeira vítima, ao se perder na intensidade do seu papel, mas nada é mais dolorosamente degradante do que o progressivo esfacelamento da família de Eddie (esfacelamento, aliás, que já se anuncia sutilmente na primeira cena do filme). Ao recorrer a mise en abîme, mostrando o filme dentro do filme, Abel Ferrara quer menos refletir sobre os processos de sua arte do que nos falar de algo (em termos metafísicos) muito mais grave: o mal. Sobram farpas também para Hollywood e sua indústria do estrelato. Muitos elementos de Olhos de serpente foram retomados e aprimorados no espantoso Maria (2005), sobre qual um dia terei de escrever.


terça-feira, 24 de setembro de 2013

Retalhos [1]


Se há uma marca singular da cultura universitária brasileira hoje é a presença soberana, impositiva, dos formulários. Uma das principais atividades de um professor com doutorado em uma universidade pública hoje é preencher formulários; sua principal virtude é a paciência. Capacidade intelectual e domínio de escrita são importantes, mas não imprescindíveis: um professor burro e incapaz de articular duas frases com um conectivo correto, se tiver paciência e pegar o jeito do gênero formulário, preenchendo-o com aquelas fórmulas batidas, pode mover mundos.

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A dEsEnrEdoS acaba de conquistar o Qualis B4 na área de Educação. Antes já possuíamos aquela qualificação em Letras, História, Filosofia e Teologia. Nosso Qualis até poderia ser maior, mas é sempre bom lembrar que somos independentes, sem vínculos com editoras ou programas de pós-graduação. O que nos alegra é que, desde o princípio, procuramos estimular o debate de Humanidades sem preconceitos, embora tomando como eixo central a Literatura. Não por acaso nos denominamos "uma revista de cultura e literatura". Agradeço aqui a todos que, direta ou indiretamente, contribuíram nesses anos com a revista!

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A leveza custa caro. É difícil. E às vezes apenas procrastina uma dor maior. Por isso eu gosto tanto dos islandeses do Múm: http://www.youtube.com/watch?v=VeaRDcdwrZg


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O IRON MAIDEN é minha madeleine proustiana. Uma parte de minha história adolescente passa como um filme em minha cabeça quando os caras começam a tocar. Eu nem sei se estou aqui onde me encontro ou se estou lá em Valença, no início dos anos 90, com alguns amigos que me são diletos até hoje.

Falo isso tudo do Iron Maiden sem fazer nenhum ajuizamento estético sobre a banda que hoje ouço muito pouco. A maior besteira do mundo é supor que só as grandes obras e os grandes mestres abalam profundamente a nossa vida.

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"Escrever as coisas tal como aconteceram é tornar-se escravo de sua própria memória, que é um elemento menor do processo criativo [...]. Os materiais são de fato extraídos da vida do autor, mas em última análise a criação é uma criatura independente [...]. A realidade é sempre mais forte que a imaginação humana. Além disso, a realidade pode se dar ao luxo de ser inacreditável, inexplicável, desproporcional. A obra criada, infelizmente, não tem esse direito." (Aharon Appelfeld)

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Há um bom tempo venho dizendo que o espaço de comentários de sites e blogs é o esgoto da notícia. Sob o pretexto de democratizar o debate, este espaço tem servido mesmo é para escroques e pusilânimes, escondidos sob a proteção do anonimato ou do perfil fake, despejarem ignorância, preconceito e grosseria. Lendo agora mesmo, no blog do Alfredo Werney, os comentários de anônimos a uma crítica que ele fez do filme "Cine Holliúdy" reforcei esta minha crença. Apenas um comentário, embora grosseiro, propõe uma leitura alternativa; o restante nem merece ser lido até o final. Me solidarizo com o Alfredo e com todas as pessoas que, sem ganharem um centavo, buscam impulsionar o debate cultural na rede e só ganham em troca as patadas de covardes que sequer têm a hombridade de mostrarem a cara. Discordar só é válido se houver bom senso e argumento - quem só sabe xingar está num nível infra-humano de convivência.

sábado, 31 de agosto de 2013

Toy Story 3 e o estatuto da imagem nas animações


As animações constituem um setor do cinema onde os rastros da magia e do mito podem ser percebidos sem muita dificuldade. Daí, não é de surpreender que nos defendamos das animações, nós racionalistas desencantados, exorcizando suas ambiguidades seja por meio de um discurso destimificador que busca baratear o sentido das imagens, traduzindo-as a partir de categorias das hermenêuticas da suspeita (Ricoeur) – ideologia, inconsciente, estrutura etc –, seja alcunhando-a de infantil, como se isso significasse superficialidade, entretenimento não instrutivo, passatempo bobo.

Não devemos pensar que a imagem, da animação ou do cinema em geral, seja intraduzível, nem que sejam ilegítimas as explicações derivadas das hermenêuticas da suspeita. O que parece ilegítimo é o uso puro e simples da animação, para desmitificar ou ainda para moralizar. Há um ódio à arte, ou pelo menos uma insensibilidade patológica, naqueles que só sabem vê-la como ilustração de forças ou verdades exteriores a ela. Pensemos numa professora bem intencionada que usa um produto como Toy Story 3 (Lee Unkrich, EUA, 2010) para reforçar um discurso edificante sobre a amizade ou num crítico cultural que se vale da mesma obra para demonstrar a aliança entre a indústria cinematográfica, consumo e reificação. Quem há de negar que Toy Story 3 seja uma bela parábola sobre a amizade? Quem também há de negar que o filme abusa do merchandising, elevando, por exemplo, a chatinha da boneca Barbie – cuja filosofia de vida (um amálgama grotesco de consumismo, egolatrismo, “coleguismo”, hedonismo, ecologismo, feminismo, moralismo e fetichismo) é das mais estúpidas já imaginadas neste planeta – ao status de heroína altruísta e até simpática?

Penso, porém, que Toy Story 3 escapa com folga dessas simplificações. Como um de seus modelos ancestrais – “O soldadinho de chumbo”, de Hans Christian Andersen –, ele aceita, por seu caráter de parábola, ser simplificado, mas é tão cheio de sutilezas, tão eivado de imagens susgestivas, que logo se vê a incompletude e, em alguns casos, a farsa de tais simplificações. O mundo de Toy Story 3, assim como o do soldadinho de Andersen, é fantástico e crível; é aconchegante e misterioso; está bem longe e bem perto de nós. Além disso (sou tentado a dizer: acima disso), são mundos regidos por uma honestidade notória perante os eventos da vida. Por isso, apesar de serem mundos preferencialmente “para crianças”, neles a velhice, a morte, a solidão e o abandono não são mascarados por piadinhas. Há humor? Sim, mas não um humor que seja um virar de costas para a vida “real”, com seus problemas “reais”. Em Andersen, o lirismo de uma sensibilidade profundamente religiosa doa beleza a eventos como a morte, o frio e abandono sem que a verdade do evento seja esmaecida; na trilogia Toy Story quem filtra o lado “feio” da vida (morte, abandono) de seus temores e nos devolve a sensatez necessária para encarar as durezas da vida é o magnético cowboy Woody, desde sempre o brinquedo preferido de Andy.

Nos últimos dez anos de cinema estadunidense, Woody é um dos personagens mais maduros que apareceu; sua capacidade de auto-sacrifícios em nome de seus credos e de sua “família” lembra alguns heróis de Clint Eastwood (por exemplo, o Walt Kowalski de Gran Torino).

Eu gostaria aqui de tentar destecer um pouco a complexa rede de simbolismos e alusões que Toy Story 3 tece. Pensar um pouco mais sobre o contraste entre tradição e modernidade que o filme elabora a partir da contraposição entre cowboy Woody e herói espacial Buzz; pensar o caráter desmontável de Sr. e da Sra. Cabeça de Batata à luz das idéias a respeito das identidades fragmentadas da pós-modernidade; pensar com Foucault sobre a vinculação entre instituição e produção de regimes de verdade, a fim de entender melhor a domesticação dos corpos e a produção de subjetividades na creche de Sunnyside. Poderia também mostrar como o filme desmonta uma série de preconceitos e estereótipos com bastante humor e uma inteligência muito acima da média – por exemplo, pôr um ursinho rosa e cheirando a morango silvestre como vilão-mor; reverter a alienação religiosa dos 3 marcianinhos (“O Garra!...”) em fonte de salvação dos demais brinquedos, quase consumidos por um incinerador muito semelhante ao Inferno de certa vertente do imaginário cristão; satirizar de maneira politicamente incorreta o homossexualismo recalcado do egocêntrico Ken. Porém, mais importante do que tudo isso, para quem de fato gosta de cinema, é a convivência amorosa com as imagens que nos impactaram. Nisso há uma sabedoria que não se desvincula do afeto.



quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O Rap polêmico de Kedé


O ódio destilado pelo rapper Kedé não é justo mas é justificável. É preciso muita cegueira social ou muito cinismo para, sem hesitações, tachar Kledeilson Barreto de marginal e coisas do tipo - como fizeram muitos veículos de comunicação - e não enxergar razão nenhuma na revolta social dele. Não sou dos mais adeptos à ladainha do vitimismo social, sei que o jogo de forças é muito mais complexo - mas, neste caso específico, Kledeilson não está reclamando à toa. Assim como meu amigo Thiago E Ah, torço por um diálogo construtivo entre as partes em querela. Mas, cá pra nós, acho que uma das partes interessadas, o RONE, vai querer desforra. E desforra sem alarde público nenhum. Não faço com isso um julgamento moral do RONE, não tenho conhecimento de causa para tanto, mas me baseio no que vi sem que ninguém precisasse me contar. Vi, me choquei e não trarei a público porque não filmei nem fotografei. Por mais justos que sejam os policiais do RONE, eles estão de orgulho ferido e terão dificuldade de lidar com o que consideram uma 'ameaça pública'. E o pior é que a mídia alimenta a rixa: quer estender o equívoco espetáculo, mesmo que isso não seja o melhor para a sociedade em geral.

sábado, 27 de julho de 2013

Dilemas da crítica literária nacional

Parte considerável da crítica brasileira tem um problema grave, que é a falta de um olhar comparativo. Por exemplo, um problema real da crítica formada na universidade hoje em dia é o estreitamento preocupante do horizonte de leitura. Os críticos analisam apenas os textos que confirmam as suas opções teóricas prévias e que levam à leitura de uma única família de autores.

- João Cezar de Castro Rocha, nesta entrevista aqui.

Chesterton, meu avô e o Atlético Mineiro


Meu Deus, que saudades do meu avô. Que graça tem agora xingar os jogadores de canela-de-pau sem ele por perto para me complementar? Como ele sabia praquejar bem os canelas-de-pau! Até hoje eu tenho dificuldade de ouvir aquela musiquinha do Globo Esporte e não me comover em excesso. O que Alfredo da Costa Lima não vibraria vendo hoje o futebol em HD?! Alfredo Lima foi o meu Chesterton particular: o chiste dito na hora certa, a censura bem humorada, o tradicionalismo sem caretice, a experiência e o bom senso do senso-comum. Se ele tivesse vivo, ele teria me dado um bom carão por eu ter torcido pro Olympia na final da Libertadores. E, claro, ele estaria certíssimo!

quinta-feira, 25 de julho de 2013

2 poemas incas


PAI CONDOR

Conduze-me, Pai Condor,
Leva-me, Falcão fraterno.
Avisem à minha mãezinha:
Já contam cinco dias
Que não como nem bebo.
Senhor emissário e cúmplice,
Chasqui portador de mensagens:
A ti suplico que leve
Palavras minhas e o coração
A meu pai querido,
Que tudo conte à minha mãezinha!


CANTO DE GUERRA

Beberemos no crânio do inimigo,
Faremos um colar de seus dentes,
Faremos flautas de seus ossos,
De sua pele faremos tambores,
E assim cantaremos!

(Traduções de Wanderson Lima)

PS.: Informações básicas sobre Literatura Quechua, leia aqui. “Chasqui”, no Império Inca, era o mensageiro que transmitia ordens e notícias. Poemas retirados do livro “Literatura quéchua. Compilación, prólogo, traducciones, notas y cronología: Edmundo Bendezú Aybar”, Venezuela, Fundación Biblioteca Ayacucho, s.d., p. 18.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Acrobacias culturais (sobre a primeira edição da Acrobata)




Teresina está passando por um lento processo de desguetização cultural. O aldeamento que a marcou, bem como ocorrera a outros centros culturais do país, começa a ressoar seus últimos ecos – e, assim, a literatura aqui produzida, a cultura em geral feita aqui, começa a ser pensada integrada aos dilemas e sucessos nacionais, diria mesmo globais. Com isso, não se nega a especificidade da produção local; nega-se, isto sim, que estejamos ilhados do resto do país e do mundo.

Em médio ou longo prazo, essa situação deverá galvanizar um debate em torno da velha noção de “Literatura Piauiense”. Precisaremos – penso que já precisamos, agora – reconsiderar o conceito de literatura regional, seja para precisá-lo seja para implodi-lo. Em curto prazo, porém, revistas como a dEsEnrEdoS, Revestrés e este belíssimo rebento chamado Acrobata vão capinando o terreno, devastando as ervas daninhas que criavam falsas cercas entre terrenos vizinhos. Claro que não se pode reduzir a importância de tais veículos a esse processo de desguetização cultural – mas, sem dúvida, aquela tarefa se conta entre as mais relevantes missões de tais veículos.

Embora debutante, Acrobata vem encabeçada por editores calejados de outras experiências culturais de relevo. Tom Jobim falou, certa vez, que o Brasil não é um país para principiantes; pois bem, se pensarmos especificamente no campo cultural, a frase do eminente músico ganha um sentido agônico. A experiência dos editores, portanto, é um dado relevante, que me faz acreditar que estamos diante de um empreendimento que terá boa longevidade. Não será fácil porque Acrobata surpreendente tanto pela qualidade dos textos como pela qualidade material, sem dúvida uma das mais revistas visualmente mais agradáveis de que tenho notícia no país.

Acrobata une criação e crítica numa dosagem perfeita, e com dois méritos extras. O primeiro é não se limitar à literatura, ainda que esta seja o epicentro da publicação; a segunda é que os ensaios ali presentes nem se excedem nos protocolos acadêmicos nem se restringem à mera reportagem informativa.

A perspectiva do veículo contempla principalmente a literatura de invenção, a arte mais experimental, mas nem de longe se nota em suas páginas ou nas palavras dos editores qualquer laivo de dogmatismo ideológico ou unicismo estético.

Cada um, a depender de seu temperamento e de sua formação, há de se agradar mais desse ou daquele texto. Trata-se, reforço, de um veículo plural. E com nada menos que uma centena de páginas. Entre muita coisa de boa cepa, e algumas poesias que não quero voltar a ler, destaco os poemas excelentes dessa ótima poetisa de São Tomé e Príncipe: Conceição Lima. Só ela já pagaria o preço da revista. Mas isso é só uma parte: há uma entrevista com Sergio Cohn que considero nada menos que histórica (o que não significa que eu concorde com tudo que se diz ali), um ensaio elucidativo de Nayhd Barros sobre Godard e um interessante depoimento de Edson Cruz sobre as revistas literárias no Brasil. Posso falar de outras surpresas boas de conviver, posso destacar o pagode da poesia promovido por Thiago E, a expressão exata do verso de Salgado Maranhão, a pureza lírica dos traços de Cícero Manoel. E, claro, não deixarei de mencionar que colaboro ali com um ensaio sobre “A cena poética de Teresina”.


sábado, 20 de julho de 2013

Björk: Unravel/Desfiar-se





DESFIAR-SE


Enquanto você se distancia
Meu coração se arruína
Devagar se desfia
num enredo de fios

O diabo os amarra
Arreganha a bocarra – e ri
Do nosso amor
num enredo de fios

Nunca o diabo irá nos repor
Então, quando você voltar
Teremos de fiar um novo amor

[Texto original AQUI]

terça-feira, 16 de julho de 2013

Clément Rosset


Aí está um filósofo pouco conhecido mas sumamente interessante: Clément Rosset. Não concordo inteiramente com sua hipótese de partida - sua teoria da duplicação do real como exorcismo inútil (e até perigoso) da essência trágica da existência - , mas não deixo de admirá-lo em suas reinterpretações de questões pontuais da vida cotidiana, da história da arte e do pensamento. Seus melhores livros são “O real e seu duplo” (ponto de partida de sua filosofia trágica) e “A Anti-Natureza”.

Eis uma bela entrevista de Rosset, em espanhol, AQUI.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Silogismos da amargura - Cioran


Conheci E. M. Cioran pelas mãos da amiga Marleide Lins, em fins dos nos 90. Não conhecia nada de gnosticismo, nem de mística, e muito menos sabia o sentido da expressão ontologia, mas, como já tinha lido Camus e Dostoievski, vi em Cioran algo como um existencialista de gueto, um niilista lúcido mas em vias de perder os sentidos. Através de Cioran cheguei a Teresa D'Ávila, que me levou a Juan de la Cruz, que por sua vez me atiçou a conhecer a literatura e a mística espanhola. Hoje, digo e repito: escolhi como pátria espiritual a Espanha. Ou seja, Cioran fertilizou minha vida intelectual; deu-me a Espanha de presente e, ateu místico, me ajudou a chegar a Deus. Recentemente, voltei a reler o filósofo romeno por sugestão de outro filósofo que muito admiro: Sloterdijk. Eis que então, na semana passada, Adriano Lobão Aragão, o melhor presenteador que eu conheço, me oferta a nova edição de "Silogismos da amargura", um dos cinco melhores livros do autor. Os outros quatro são: "Breviário de decomposição", "Exercícios de admiração" e dois não traduzidos no Brasil: "El aciago demiurgo" (Le mauvais démiurge) e "De lágrimas y de santos" (Lacrimi si Sfinti). Eis 3 aforismos desse livro lírico e impiedoso em último grau:

"Fracassar na vida é ter acesso à poesia - sem o suporte do talento"

"O pessimista deve inventar cada dia novas razões de existir: é uma vítima do 'sentido' da vida".

"Dom Quixote representa a juventude de uma civilização: ele se inventava acontecimentos; nós não sabemos como escapar aos que nos perseguem".

Sugiro fortemente a leitura de "Silogismos da amargura". Além de ser uma excelente porta de entrada no universo do pensador romeno - todos os seus temas prediletos estão lá -, a tradução de José Thomas Brum recria o estilo cioraniano com muita felicidade.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Protestos pelo Brasil


O niilismo alegre e narcisista dessa geração encontrou seu sentido onde poderia encontrá-lo: na negação.  Por isso, não nos enganemos: todo cartaz, toda fantasia, tudo vai além do riso: guarda uma cilada que desemboca no desespero que REBENTA sem peias do semi-ilustre peito brasileiro. Já se disse mil vezes: não é contra PT apenas ou contra a Copa ou contra Feliciano. É contra. É o basta.  Não há falta de foco: a corrupção e o cinismo é que são mais difusos do que os amigos da boa ordem pensam. É todo o arcabouço que recobre nosso modelo democrático que começa a ruir, podre e esfarrapado. É hora de repensar o voto obrigatório e muitas outras coisas; talvez seja hora de ouvir sem pressa o que os velhos anarquistas têm a nos dizer. O que mais pode desvirtuar a força explosiva desse momento é a esquerda radical achar que o povo começa a levá-la a sério. Não ainda. Torço de coração que as manifestações de Teresina e de Floriano sejam CONTRA, e que PSTU & Cia não ajam como aproveitadores. A grande massa de brasileiros não se encontra representada por nenhum partido político. Como católico, funcionário público, pai de dois filhos, goleiro de pelada, leitor de poesia e tomador de café, eu repilo a violência revolucionária. Mas não sou burro nem otimista.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Formar leitores



Em depoimentos de escritores consagrados, sempre me surpreende um fato: quase todos adentraram no mundo da leitura tendo por guia um desses clássicos absolutos: o Quixote, As mil e uma noites, O primo Basílio, Moby Dick, e até Os sertões ou Os lusíadas. Quando o depoimento é de escritores antigos, quero dizer, que cresceram até a primeira metade do século XX, vá lá; mas quando se trata daqueles que nasceram na era da Cultura de Massa, cercados de jornais, histórias em quadrinhos e etc, tenho minhas dúvidas da veracidade do depoimento. Eu, que sou mortal e me encontro na faixa mediana da inteligência humana, comecei mesmo a ler através das histórias em quadrinhos da Luluzinha, do Pato Donald e principalmente da Turma da Mônica. O primeiro livro que li, até onde me lembro, foi Jogando com o Pelé. Na minha cabeça, o autor do livro era o próprio Pelé, mas, pesquisando agora a pouco, descobri que foi escrito “em colaboração” com Júlio Mazzei. A leitura de Jogando com o Pelé não foi nenhum encontro mágico, nenhuma experiência extática que mudou minha vida para sempre, como reza a mitologia criada por muitos escritores, quando descrevem o primeiro livro lido. Lembro muito de dois capítulos de Jogando com o Pelé: um sobre o cabeceio e outro sobre como o goleiro deve se posicionar na área. Nas peladas com amigos, sempre me dei bem nas cobranças de penalidades, defendendo muitas delas, e agradeço às dicas do Pelé. Ou seja, o primeiro livro de que me lembro ter lido – minha mãe recorda vagamente de me ver com outros livros em datas anteriores – não me ofereceu nenhuma experiência mágica, transcendental, mas teve um valor prático que, de certa forma, carrego até hoje. Acho que foi pela literatura de cordel, mais especificamente pelo cordel A chegada de Lampião no Inferno, que realmente senti aquele encanto pela música verbal de que fala Jorge Luis Borges, aquele encanto que nos mostra uma outra face da linguagem.

Como me tornei professor, a questão da leitura sempre rondou minha vida. Sempre procurei transmitir a meus alunos, independente da série ou da idade, esse amor à leitura que me veio inicialmente dessas leituras “pobres” e não dos clássicos, mas que, pouco a pouco, me levou aos clássicos. Mas não vou contar aqui sobre meu encontro com os clássicos. Vou contar como o problema da leitura, em minha vida, ganhou um novo contexto. Este contexto nasceu de uma nova condição existencial: a de pai. Quem é professor e gosta de ler, pensa que será fácil tornar o filho um leitor. É claro que a condição de professor-leitor ajuda, mas nem por isso torna as coisas fáceis. Como a maioria dos garotos urbanóides de classe média, meu filho (que fez nove anos a poucos dias) gosta de games, jogos interativos online, artes marciais, cinema e televisão. A leitura nunca lhe foi antipática, mas também nunca esteve no centro dos seus interesses. Se a professora lhe passa um livro, ele lê sem reclamar, mas também sem se empolgar.

Pois bem, levei-o este ano no Salipi. No primeiro dia, ele comprou um manual de truques mágicos. Leu um pedacinho do livro, aprendeu dois ou três truques bobinhos e esqueceu, por enquanto, o livro (como, aliás, ele costuma fazer com livros que comprou em livrarias: lê uma vez, às vezes apressado, e depois esquece).  No segundo dia, ele se deparou com um livro que chamou atenção pela capa; sentou-se, baixou a vista, leu um pouquinho bastante concentrado. Pediu-me, em seguida, que o comprasse. Não me senti animado: além de caro para o meu salário de professor, o livro era o terceiro de uma saga em que só a primeira parte é composta por 8 livros (completa, a saga tem 15 livros). Além disso, tinha algo próximo de 120 páginas e só dois mapas de ilustração, algo muito desafiador para alguém da idade dele e pouco habituado a leituras de maior extensão. Mesmo assim, acabei comprando. E funcionou. Ele já está lendo o terceiro livro (como leu primeiro a parte 3, retornou agora às partes 1 e 2).

Por que será, perguntei-me, que o livro chamou a atenção dele, enquanto outros indicados por mim e pela escola nunca lhe empolgaram dessa maneira? Um dos motivos é que tanto eu e minha esposa quanto a escola somos surdos aos apelos da idade. Esquecemos que iniciamos nossa leitura com textos geralmente “menores” e queremos impor aos pupilos nossos clássicos. Ora, um clássico não se impõe como clássico para quem não tem noção ainda do que é um clássico. Quem sabe o que é um clássico tem padrão de julgamento mais confiável; quem não sabe (e a maioria não sabe) tende a cultivar a leitura como uma arte erótica, reduzindo a literatura a objetivo de prazer. O salto da arte erótica – salto que não significa total superação, diga-se de passagem, pois sem prazer a leitura da obra literária perde parte de seu sentido – para uma dimensão mais reflexiva, para associação da literatura com os dilemas da condição humana, é paulatino. Gostaria de iniciar meu filho no mundo da literatura com o Dom Quixote, mas como ele não tem qualquer laivo de genialidade ou superdotação este desejo tornar-se-á um pesadelo se posto em prática. A escola, ou melhor, alguns professores tentam resolver este problema de uma forma que não encontro adjetivos melhores que lastimável e ridículo: adotam aquelas adaptações de obras clássicas. Dom Quixote em 70 páginas, Sonhos de uma noite de verão em 30, Odisséia em 20.

Eis um tema sobre o qual tenho de escrever um longo texto: as conseqüências dessas adaptações na formação do leitor; as reduções que elas promovem; a possibilidade de haver ganho nelas. Por hora, digo apenas que as chamadas de adaptações deveriam a rigor ser consideradas obras novas; uma adaptação de Dom Quixote é outra obra. O problema é que as editoras vendem a adaptação de Dom Quixote como se fosse o Dom Quixote. O otimismo ingênuo de muitos professores os leva a pensar que estão estimulando o cultivo dos clássicos. Mas o liame entre o clássico e sua adaptação simplificada é mais tênue do que geralmente se imagina e, além disso, nada, absolutamente nada garante que o aluno que leu hoje a adaptação de Moby Dick ou de O crime do padre Amaro irá no futuro procurar as obras originais. A pergunta que fica é: se há excelentes obras infanto-juvenis, por que não adotá-las em vez de ir à cata de clássicos empobrecidos por uma condensação extrema? Não bastasse isso, ainda é válido lembrar que diversos clássicos estrangeiros e vernáculos – como Oscar Wilde, Mark Twain, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Vinícius de Moraes, Cecília Meireles – escreveram histórias de alto nível para o público infanto-juvenil. Para que impor aos alunos uma adaptação empobrecedora de O retrato de Dorian Gray – que, diga-se de passagem, não considero nem longe comparável às peças cômicas do autor – se há os contos infanto-juvenis de Wilde à disposição? Em maio deste ano, adotaram como leitura obrigatória para meu filho uma adaptação de O príncipe e o mendigo. No princípio, pensei: vou ler com ele a tradução integral. Mas, comparando o primeiro capítulo da adaptação com o da tradução integral, vi que se fizesse isto meu filho responderia a prova toda errada. Percebi que o adaptador possivelmente entendia como fidelidade à obra original a manutenção de linhas gerais do enredo, o que dispensava como secundário passagens descritivas, mesmo aqueles de grande funcionalidade simbólica. Meu Deus, nesta linha interpretativa o que sobraria de Balzac, Alencar e Eça? Imagine a seguinte passagem, conhecidíssima, de O primo Basílio:


E Luísa tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!

Ergueu-se de um salto, passou rapidamente um roupão, veio levantar os transparentes da janela... Que linda manhã! Era um daqueles dias do fim de agosto em que o estio faz uma pausa; há prematuramente, no calor e na luz, uma certa tranqüilidade outonal; o sol cai largo, resplandecente, mas pousa de leve; o ar não tem o embaciado canicular, e o azul muito alto reluz com uma nitidez lavada; respira-se mais livremente; e já se não vê na gente que passa o abatimento mole da calma enfraquecedora. Veio-lhe uma alegria: sentia-se ligeira, tinha dormido a noite de um sono são, contínuo, e todas as agitações, as impaciências dos dias passados pareciam ter-se dissipado naquele repouso. Foi-se ver ao espelho; achou a pele mais clara, mais fresca, e um enternecimento úmido no olhar.


Pela lógica que rege a maioria das adaptações, de uma a três frases seriam suficientes para resumir este trecho. Bastava algo banal como “Luísa recebeu a carta e ficou delirante de paixão, se sentido muito feliz e satisfeita consigo”. Ou seja, a adaptação mataria tudo o que no trecho eciano há de ironia e crítica, de consonância do autor com as crenças psicofisiológicas da época, de ampliação das possibilidades semânticas e estilísticas do uso do adjetivo em língua portuguesa.

Se O primo Basílio é levado ao cinema, se vira peça teatral ou seriado televisivo, muita gente desculpa as supostas infidelidades argumentando, com justiça, que cinema, teatro e televisão têm suas próprias regras, que neste caso adaptação fiel não implica reprodução ipsis litteris.  No entanto, se alguém reduz a narrativa de mesma obra, que na minha edição (São Paulo, Ática, 1997) ultrapassa as 320 páginas, para 60 páginas muita gente ainda quer achar que se trata da mesma obra. E o que dizer, para citar um caso mais extremo, da Divina Comédia, que é traduzida, vertida em prosa e reduzida para 50 páginas. Em suma: a qualidade literária de uma adaptação (se é que alguma possui essa qualidade) deve ser aferida sem remissão à obra em que se baseou, já que são duas coisas diferentes.

Fiz uma digressão sobre as adaptações e agora retomo minha reflexão central. Por que a tal saga, intitulada Deltora Quest, e escrita pela australiana Emily Rodda, chamou tanto a atenção de meu filho, e o tem feito reconsiderar o valor da leitura? Li 3 capítulos do terceiro livro (A cidade dos ratos) e 2 capítulos do primeiro livro (As florestas do silêncio) e pude perceber algumas coisas. O primeiro livro exibe algumas sofisticações, como digressões e fragmento de livros dentro de livro, mas nem por isso perde a fluência narrativa. O terceiro me pareceu mais fluente, com diálogos mais redundantes ainda, vocábulos difíceis postos espertamente em contextos que permitem ao leitor adivinhar o sentido. Talvez essa diferença se explique pelo fato de eu só ter lidos trechos; talvez no terceiro volume a autora já estivesse mais segura e íntima do processo, com a narrativa mais sob controle. Há outros ingredientes gerais que atraem os leitores juvenis, sempre condicionados a um narrar fluente e até elegante, não obstante aqui a ali se apresente um clichê: a ambientação medieval; a narrativa desenvolvida em etapas ou fases, como num jogo de vídeo-game; e heróis infanto-juvenis para todo gosto, dos valentes aos astutos, cujo carisma desperta uma adesão quase imediata.

Não nutro a menor ilusão de que meu filho salte de Emily Rodda para os clássicos. Mais provável é que passe para Harry Potter e similares, ou simplesmente volte-se com exclusividade aos filmes de entretenimento e aos games. Mas seu eu comecei com Jogando com Pelé, não é impossível que Rodda ajude. Aliás, não serei cético: ajuda, e ajuda muito mais que as adaptações que ele lê na escola para fazer prova. Por enquanto acompanho a leitura dele meio de longe, falo de outras histórias similares e guardo aquele aforismo de Harold Bloom como um amuleto:

“Não devemos recear o fato de nosso conhecimento como leitores parecer por demais autocentrado, pois, se nos tornamos leitores autênticos, os resultados dos nossos esforços nos afirmarão como portadores de luz a outras pessoas” (In: Como e por que ler, 2001, p. 20-21).


Post-scriptum 2013: Escrevi o texto acima em 2011. Contínuo na luta para fazer do Ícaro um leitor. Contínuo progredindo, ainda que devagar. A paixão dele agora são os mangás e as graphic novels. Ele ficou na leitura só de 3 livros da saga escrita por Rodda e depois encheu o saco. Em seguida, ficou fissurado na série Diário de um banana, da qual leu 5 livros. Hoje ele anda lendo os mangás O chamado, Diário do futuro, Death Note e Naruto.