Citar – isto é, aludir, parodiar,
parafrasear, pastichar – é a regra de ouro de toda obra que queira parecer
profunda. Uma pitada de referência mitológica, uma citação bíblica, uma piscada
de olho para Homero: pronto, eis que surge uma obra densa, profunda! Raramente
se pergunta pela qualidade e a adequação da citação. O simples fato de ali,
naquele seriado preguiçoso ou naquele filminho vagabundo, ser notório uma
alusão ao Gênesis ou ao Apocalipse é suficiente para se atestar
a profundidade da obra.
Se eu pudesse apontar uma única falha nesse
belo 9 - A salvação (2009) seria
esta: a citação pseudoculta. Apinhado de citações, o filme investe na retomada
de um topos consagrado na literatura
e no cinema – a vida num mundo pós-apocalíptico, dominado por máquinas
perversas. Em 9, a humanidade
já foi para o beleléu, engolida pelas máquinas inteligentes gestadas, “para
facilitar o progresso da raça humana”, por um cientista (advinha?) de bom
coração mas... ingênuo, que não sabia do mal uso que fariam com sua engenhoca. Antes de morrer, o nobre sábio constrói
bonequinhos toscos, aos quais – a velha aliança entre ciência e magia! – doa
sua alma, na esperança de redimir seu erro e salvar uma porção da humanidade. O
último desses bonequinhos que ganha vida é 9, e é ele o Redentor. Evito aqui
relatar o enredo com detalhes, mas posso adiantar que nos nove bonequinhos que
protagonizam o filme o diretor e a roteirista concentram notável galeria de
arquétipos, através dos quais movem sem pejo um dilúvio de clichês: há o asceta
covarde, modelado na fôrma do ressentido nietzschiano, pregando sua moral de
rebanho e disseminando seu ódio a tudo que é nobre e forte (embora, ao fim, ele
se redima, num dos poucos lances de rebeldia do diretor contra a rigidez dos topoi que ele põe em movimento); há o
velho sábio, a femme fatale, o
brutamonte idiota; o inventor, o artista-profeta e, claro, o redentor de todos
eles.
É preciso dizer que 9 surgiu de um magnífico
curta homônimo, também de Shane Acker. Sem dúvida, o curta é infinitamente melhor
que o longa, por dois motivos: mantém a mesma soberbia visual e explica pouco.
O longa, ao querer explicar demais, mata a poesia por excesso de didatismo, se
enrola em clichês, se perde em excessivas alusões (bíblicas, literárias,
cinematográficas e até cabalísticas) cuja maior funcionalidade e querer dar um
ar cult ao filme.
Na verdade, não vejo por que esse desejo de
querer parecer cult. Implico com este
fato porque considero que a pretensão desbragada do diretor e da roteirista
acabou por abalar o equilíbrio da obra; as inserções cults e os subtextos políticos e metafísicos funcionaram, a meu
ver, como ruídos. O que de fato é soberbo em 9 - A salvação é sua concepção visual, desde a constituição do
cenário (fruto, não tenho dúvida, de acurada pesquisa histórica), passando pelo
designer dos bonecos e máquinas, até a funcionalíssima fotografia, soturna,
bastante integrada à atmosfera da obra.
Nunca é demais lembrar que Tim Burton foi o
produtor desse filme, e é visível, para quem conhece seu estilo, o peso de sua
mão da concepção da obra. Não só isso: Burton levou seu trilheiro favorito,
Danny Elfman, que fez o trabalho musical à altura da fotografia e do cenário.
Que esses dados, porém, não sirvam para tirar o mérito de Shane Acker; quem
tiver dúvida, basta assistir ao curta que deu origem ao filme em discussão. Shane
chegou para ficar; aposto minhas fichas em seu próximo longa, independente de
quem o produza. Ficarei de olho também na Focus Features, que antes já produzira
Coraline e o mundo secreto, uma das
melhores animações da década.
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