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quinta-feira, 8 de novembro de 2012

9 - A salvação (EUA, 2009), de Shane Acker


Citar – isto é, aludir, parodiar, parafrasear, pastichar – é a regra de ouro de toda obra que queira parecer profunda. Uma pitada de referência mitológica, uma citação bíblica, uma piscada de olho para Homero: pronto, eis que surge uma obra densa, profunda! Raramente se pergunta pela qualidade e a adequação da citação. O simples fato de ali, naquele seriado preguiçoso ou naquele filminho vagabundo, ser notório uma alusão ao Gênesis ou ao Apocalipse é suficiente para se atestar a profundidade da obra.

Se eu pudesse apontar uma única falha nesse belo 9 - A salvação (2009) seria esta: a citação pseudoculta. Apinhado de citações, o filme investe na retomada de um topos consagrado na literatura e no cinema – a vida num mundo pós-apocalíptico, dominado por máquinas perversas. Em 9, a humanidade já foi para o beleléu, engolida pelas máquinas inteligentes gestadas, “para facilitar o progresso da raça humana”, por um cientista (advinha?) de bom coração mas... ingênuo, que não sabia do mal uso que fariam com sua engenhoca.  Antes de morrer, o nobre sábio constrói bonequinhos toscos, aos quais – a velha aliança entre ciência e magia! – doa sua alma, na esperança de redimir seu erro e salvar uma porção da humanidade. O último desses bonequinhos que ganha vida é 9, e é ele o Redentor. Evito aqui relatar o enredo com detalhes, mas posso adiantar que nos nove bonequinhos que protagonizam o filme o diretor e a roteirista concentram notável galeria de arquétipos, através dos quais movem sem pejo um dilúvio de clichês: há o asceta covarde, modelado na fôrma do ressentido nietzschiano, pregando sua moral de rebanho e disseminando seu ódio a tudo que é nobre e forte (embora, ao fim, ele se redima, num dos poucos lances de rebeldia do diretor contra a rigidez dos topoi que ele põe em movimento); há o velho sábio, a femme fatale, o brutamonte idiota; o inventor, o artista-profeta e, claro, o redentor de todos eles.

É preciso dizer que 9 surgiu de um magnífico curta homônimo, também de Shane Acker. Sem dúvida, o curta é infinitamente melhor que o longa, por dois motivos: mantém a mesma soberbia visual e explica pouco. O longa, ao querer explicar demais, mata a poesia por excesso de didatismo, se enrola em clichês, se perde em excessivas alusões (bíblicas, literárias, cinematográficas e até cabalísticas) cuja maior funcionalidade e querer dar um ar cult ao filme.

Na verdade, não vejo por que esse desejo de querer parecer cult. Implico com este fato porque considero que a pretensão desbragada do diretor e da roteirista acabou por abalar o equilíbrio da obra; as inserções cults e os subtextos políticos e metafísicos funcionaram, a meu ver, como ruídos. O que de fato é soberbo em 9 - A salvação é sua concepção visual, desde a constituição do cenário (fruto, não tenho dúvida, de acurada pesquisa histórica), passando pelo designer dos bonecos e máquinas, até a funcionalíssima fotografia, soturna, bastante integrada à atmosfera da obra.

Nunca é demais lembrar que Tim Burton foi o produtor desse filme, e é visível, para quem conhece seu estilo, o peso de sua mão da concepção da obra. Não só isso: Burton levou seu trilheiro favorito, Danny Elfman, que fez o trabalho musical à altura da fotografia e do cenário. Que esses dados, porém, não sirvam para tirar o mérito de Shane Acker; quem tiver dúvida, basta assistir ao curta que deu origem ao filme em discussão. Shane chegou para ficar; aposto minhas fichas em seu próximo longa, independente de quem o produza. Ficarei de olho também na Focus Features, que antes já produzira Coraline e o mundo secreto, uma das melhores animações da década.


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