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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O cânone e o espaço literário (I)


A leitura de uma entrevista de Harold Bloom (aqui) e de um texto de Miguel Sanches Neto (aqui) me trouxe de volta ao tema do cânone literário.

O culturalismo em voga descobriu cedo que o cânone é menos um problema estético que político. Aliás, estética, na linguagem desmitificadora dos estudos culturais, não passa de uma política mal disfarçada. O cânone é um trambique de machos adultos brancos eurocentristas. A pobreza flagrante desse juízo – que me poupo de contra-argumentar porque já o fiz em outros textos –  tem várias facetas nocivas, das quais uma das piores é a descrença na universalidade do discurso literário. A literatura não fala mais ao Homem (sim, é uma noção complexa e com um largo percurso histórico...); fala ao rico ou ao pobre, ao branco ou ao negro, à mulher e ao homem, ao heterossexual ou ao homossexual.

Na lógica dos estudos culturais, a literatura é uma arena de embates culturais e, portanto, a crítica literária franca não passa de um modo de fazer política cultural. Fico imaginando, e lamentando, os subprodutos literários que nascem no bojo dessas concepções! E não me venham dizer que um J. M. Coetzee ou um García Marquez, por serem queridinhos desses teóricos, compartilham dessas concepções estreitas. Com poucas exceções, os grandes autores do século XX apostaram numa concepção de literatura como um espaço sincrônico e homogêneo, capaz de rechaçar barreiras étnicas, fronteiras nacionais etc. Em Eliot, em Borges, em Valéry, em Octavio Paz, em Nabokov, em Pessoa, enfim, no mais fino que a literatura produziu no século XX, domina a crença de que a literatura é um espaço sem tempo e sem fronteiras. Não um mundo angelical, um espaço apinhado querubins benevolentes – que Pound o diga–, mas, mesmo assim, um mundo aberto ao Homem.

Quanto mais a politização do cânone avança, mais aquela crença decai e mais panfletos em forma de literatura são despejados no mundo. Mas até aí tudo bem: lê estes panfletos quem quer; ninguém está proibido de virar as costas a eles e tomar às mãos um Homero ou um Dante. O problema é quando, em nome da destruição ou alargamento desse cânone, os culturalistas – que, pelo menos nos Departamentos de Letras, são bem representados, não raras vezes sendo o grupo quantitativamente dominante – põe seu aparelho teórico a funcionar sobre a obra de Shakespeare, Camões, Cervantes etc, reduzindo-os a vilões ou mocinhos da ordem política corretinha do dia. Nesta operação, as questões (muito mais amplas e complexas) que estas obras tentaram refletir são escamoteadas, e a leitura deixa de ser descoberta e crescimento interior para tornar-se acerto de contas – dos mais mesquinhos – com o passado. Ora, se o aluno se reduz a ler, na maior parte do tempo, lixo panfletário e quando lê um clássico o faz, por orientação do professor, como um ressentido acerto de contas com o passado, que esperar dessa celeuma: que saiam alunos capazes de avaliar um texto? Capazes de apontar por que o Aleph do Paulo Coelho é uma leitura pobre, reducionista e emburrecedora do Aleph de Jorge Luis Borges?

Não adianta, de jeito algum, ler gigantes com um olhar tão nanico. Não escamoteio as dificuldades, hoje, de se buscar fundamentos e valores universais. Mas sei que o fatiamento do espaço literário em guetos políticos só é solução se quisermos aniquilar a liberdade de escolha e a consciência crítica de nossos alunos – tratando-os como zumbis que precisam ser doutrinados. Dizer que a literatura fala ao Homem é uma ilusão? É quase certo que sim. Mas, pelo menos, os resultados pedagógicos dessa ilusão são mais frutuosos – desde que não se trate de uma adoração a uma imagem estática, desde que este Homem não seja um esquema oco ou uma zombaria a todos e a cada um.


P.S.: Texto escrito em janeiro de 2012. Nunca lhe dei continuidade, mas espero um dia escrever mais a respeito do tema.    

2 comentários:

Fernando disse...

Caro Wanderson: Li com prazer este breve mas preciso artigo. Que bom ler uma voz crítica que ousa afirmar a universalidade e a soberania dos valores estéticos no campo artístico. Ainda que ilusória, a universalidade da literatura encerra efeitos de realidade incomparavelmente superiores às reduções ideológicas da crítica corrente, intra e extra muros acadêmicos.

Wanderson Lima disse...

Caro Fernando, agradeço às suas palavras e fecho 100% com o que dizes. Abraços e feliz 2013!