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segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Nota sobre A FICÇÃO E O POEMA, de Luiz Costa Lima




Em A ficção e o poema, lançado em agosto de 2012, Luiz Costa Lima dá prosseguimento à sua indagação da mímesis iniciada em Mímesis e modernidade, de 1980, e retomada em livros como Vida e mímesis (1995) e Mímesis: desafio ao pensamento (2000). A reconsideração daquele conceito tem levado Costa Lima, ao longo de mais de três décadas, a reelaborar categorias básicas do pensamento – não apenas estético, diga-se de passagem – do Ocidente, engendrando noções conceituais e hipóteses importantes como as de mímesis da representação e mímesis da produção, controle do imaginário, sujeito fraturado, representação-efeito e agora, neste novo livro, o conceito de mímesis-zero, inicialmente sugerido ao autor por duas colaboradoras, Aline Magalhães Pinto e Laíse Araújo.

A ficção e o poema é composto por um preâmbulo – em que o autor, apoiado em Kant, Freud e René Girard desenvolve a noção de mímesis-zero – e três partes de maior fôlego, relativamente independentes entre si. O que vem a ser a mímesis-zero? Costa Lima, ao fim do preâmbulo, após passar pelas contribuições do trio há pouco citado, resume a questão: “Mímesis-zero equivale a dizer que não contém figuras ou linhas de força configuradas. Ela é um como se, isto é, algo que, em estado de gestação, se for plenamente diante, será um objeto ficcional. Mímesis sem movimento porque mera potencialidade. Enquanto potencialidade, ela é uma mancha ou nebulosa tocada pela libido. A junção entre mancha psíquica e libido significa que algo ou alguém, uma paisagem ou quem a atravessou, ali deixou uma marca que, por enquanto, provoca tão só uma impressão, no entanto duradoura” (p. 26). Infelizmente, o potencial que a mímesis-zero abriga tende antes a se dissipar do que a se condensar em obra – isso porque à sociedade interessa mais que a tradição se confunda com um depósito de estereótipos, pois assim seus membros se tornam mais ordeiros e menos questionadores. A sensação de insuficiência de teorização da mímesis-zero é notória, mas como sabemos que cada livro de Costa Lima, pelo menos desde Mímesis e modernidade, retoma e aprofunda o seguinte, é quase certo que o autor retomará o problema.

Na parte I, Costa Lima se debate com Adorno e Derrida – naquele o autor brasileiro vislumbra uma proposta estética autoritária e com ressaibos teológicos que, ao exasperar o confronto da arte autônoma com a sociedade, acaba por tornar-se o reverso de uma teoria mimética da arte, ainda que o alemão tenha se ocupado com a mímesis; no pensador francês Costa Lima aponta, após um estudo cerrado de ensaios seminais como “La double séance” e “La mythologie blanche”, o equívoco de conceber a mímesis como o avatar da metafísica da presença. Contra o antirrepresentacionalismo de Derrida e a negatividade estética de Adorno com sua absoluta autonomização da arte, Costa Lima propõe, como vem fazendo desde Mímesis: desafio ao pensamento, que se tome a representação não como uma imagem fiel de algo prévio que se forma em um sujeito passivo, mas como o efeito da interação entre as propriedades de um objeto ou uma cena com as propriedades do sujeito (daí o uso, por parte do autor, do termo representação-efeito). Ora, essa noção de representação-efeito, que Costa Lima deve muito a Wolfgang Iser, como ele mesmo reconhece, afasta a mímesis da “metafísica da presença” (Derrida) sem que seja preciso admitir, como faz o filósofo francês, que o texto literário é uma deriva sem pouso, um eterno adiamento do encontro entre signo e referente.  

A parte II versa essencialmente sobre a questão da poesia em Heidegger; aqui Costa Lima demonstra que o discurso do filósofo acerca da poesia é menos demonstrativo que persuasivo (basta observar-se a linguagem nitidamente epifânica – quase uma “retórica sacra” – do pensador alemão). Assim, por exemplo, a postulação heideggeriana de que a poesia instala para o homem a morada de seu ser é nada menos que uma arbritariedade cujo pano de fundo é a entronização do poeta, do pensador e do chefe de Estado (criadores por excelência), reduzindo as demais criaturas – técnicos, cientistas, o homem cotidiano – à condição de instrumentos para aqueles. Deve-se, ainda, ao menos sob um ponto, desconfiar-se da entronização do poeta levada a cabo pelo pensador germânico: ainda que reconheça na poesia a dignidade reflexiva, Heidegger acaba fazendo com que suas análises de poetas, especialmente de Hölderlin, seja tão só a corroboração do pensamento ... de Heidegger. Costa Lima não hesita em afirmar que “a poética proposta por Heidegger não se limitava a exaltar seus próprios filosofemas, senão que convertia a arte em porta-voz de uma Alemanha por ele mesmo privilegiada” (p. 154). Daí que o brasileiro corrobore a asserção de Lacoue-Labarthe de que a poética de Heidegger constitui, na verdade, um “nacional-esteticismo”.

Na parte III, Costa Lima busca concretizar suas teorizações a partir da análise da obra poética de quatro autores: Antonio Machado, W. H. Auden, Paul Celan e Sebastião Uchoa Leite. O ponto alto dessas análises é, sem dúvida, a parte dedicada a Celan, onde a reflexão sobre assuntos controversos como a relação entre ficção e poema, ou questão da metáfora, ou as relações entre poesia e biografia atinge píncaros de agudeza e complexidade.  

Luiz Costa Lima nasceu em São Luís do Maranhão, em 1937, tendo sido levado ainda muito jovem para Recife. É professor emérito da PUC-RJ. Recebeu da Alexander von Humboldt-Stiftung (Alemanha), em 2004, o prêmio de pesquisador estrangeiro do ano, na área de Humanidades. Em 2011, a Universidade de Queensland (Austrália) realizou o colóquio “Mimesis and culture”, dedicado à sua obra. 

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