[Reproduzo aqui este texto
de 2010 em homenagem àqueles que tem acompanhado a Mostra de Cinema Iraniano na
Casa da Cultura]
Samira Makhmalbaf dirigiu o
filme “A maçã” (Sib, 1998, Irã / França) quando tinha apenas 17 anos, sendo a
mais jovem cineasta até hoje a concorrer a prêmio no Festival de Cannes. Dois
anos depois, com “O Quadro Negro” (Takhté Siah), ela ganharia o Prêmio Especial
do Júri daquele festival francês, tendo o seu nome definitivamente ganho
projeção mundial.
“A maçã” narra a história
verídica de duas irmãs, Massoumeh e Zahra, trancafiadas em casa pelos pais -
uma senhora cega e um senhor desempregado - durante 11 anos, o que as levou a
um processo de retardo mental. A prisão domiciliar era justificada por uma
passagem de um texto religioso segundo o qual as jovens são como pétalas, que
fenecem ao contato do sol. No filme, acompanhamos o drama dos pais (do pai, principalmente)
para não ver as filhas ficarem sob a tutela do Estado. Ele tentará ensinar as
meninas a desenvolver habilidades essenciais, como varrer o terreiro e fazer
comida, para provar a uma assistente social que elas devem ficar com a família.
O instigante é que não só a história das irmãs é verídica como os envolvidos no
drama representam a si mesmos no filme. O pai, por exemplo, aceitou representar
a si mesmo por acreditar que, assim, poderia defender seu nome, que fora, em
sua opinião, caluniado pela imprensa, quando o caso veio à tona. É a própria
Samira que diz, numa entrevista concedida no Brasil: “Começamos a fazer o filme
apenas quatro dias depois que toda a imprensa abriu espaço para a história.
Isso significa que o que foi captado, nesse curto período de tempo, era o real,
ou as conseqüências sociais e psicológicas do acontecido”.
Esse esfacelamento das
fronteiras entre ficção e documentário, que leva ao hibridismo das imagens, ora
em um registro bruto, ora com um zelo pictórico incomum, é nítida influência,
na jovem cineasta, de Mohsen Makhmalbaf, que é seu pai e assinou o roteiro do
filme, e de Abbas Kiarostami. Há um conjunto de filmes feitos no Irã que,
valendo-se desse hibridismo, se refestela na reedição do neo-realismo italiano,
apresentando histórias filmadas com amadores, denúncia social, mensagens
humanistas, preferência pelo plano-seqüência e uma insistência em mostrar, nem
sempre por necessidades estéticas, a beleza das paisagens iranianas em planos
gerais de tirar o fôlego. É a vertente que nos deu, por exemplo, o Majid Majidi
de “A cor do paraíso”, o Bhaman Ghobadi de “Tempos de embebedar cavalos” e o
Mohsen Makhmalbaf de “Caminho de Kandahar”. São filmes belos, minimalistas,
movidos pela crença implícita de uma transparência simbólica da representação
cinematográfica, a decantada idéia do cinema como a arte realista por
excelência, como defendia André Bazin. A adesão de Samira a um realismo de
imagens híbridas vai além desse realismo, digamos, convencional: passa por uma
crítica da auto-evidência da imagem e por um questionamento radical sobre o
papel do cinema e os limites entre o ator e a pessoa real. Ou seja, “A maçã”
deriva do grande Abbas Kiarostami de “Close-up” (1990) e do Mohsen Makhmalbaf
de “Um instante de inocência” (1996).
À primeira vista, “A maçã”
pode chocar, porque Samira é avessa a ornamentos e melodrama. Sente-se, durante
toda a história, que a diretora, mesmo tratando de uma situação dolorosa e
aberrante, não nos quer fazer chorar. A precisão e a lentidão da fotografia
convidam à reflexão, à apreciação racional. Samira vale-se do distanciamento,
evitando que façamos julgamentos emotivos ou unilaterais. Trata-se de um filme
polifônico, no sentido bakhtiniano do termo: ali estão presentes a ótica da
família, a da vizinhança e a do Estado, na figura da assistente social. A
diretora penetra nos dramas humanos evitando simplificações: não há um culpado,
há culpados. Fica sugerido que é a própria estrutura do país - seu modelo de
educação, sua moral, seu machismo - que produz as condições que geram casos
aberrantes, como o que é analisado no filme.
A primeira cena do filme
apresenta bem o estilo da diretora: vemos uma mão que tenta, com dificuldade,
regar uma plantinha. Há um impedimento, a mão peleja, mas só uma parte da água
cai no vazo. Mais adiante, saberemos que o impedimento fora oriundo de
problemas de coordenação motora, já que Massoumeh e Zahra não foram
socializadas na idade certa. As irmãs serão como essa tênue planta, e só
poderão ser “regadas” quando a mão da coletividade agir. Isto se confirma na
cena seguinte, que apresenta os pais das irmãs, significativamente, de costas:
deles, talvez, elas não possam esperar serem “regadas”. A seguir, vemos um
documento, um abaixo-assinado, em que os vizinhos denunciam a situação de
Massoumeh e Zahra às autoridades. A última assinatura é justamente de Samira
Makhmalbaf que, assim, assina sua responsabilidade não só na/pela ficção, mas
na ação social prática.
Assim como a planta da cena
inicial, outros símbolos irrompem, ora mais ora menos explícitos, no decorrer
do filme. Diríamos que o simbolismo ostensivo é um único e eficaz oásis na
aridez do estilo de Samira. Um desses símbolos, a maçã, dá unidade ao filme e,
com justiça, serve de título. A maçã aqui não está associada ao pecado, mas à
redenção: é com a maçã (e mais tarde com o espelho) que a assistente social
declara seu cuidado com Massoumeh e Zahra; é quando as irmãs vão, sozinhas, ao
mercado comprar maçãs que fica provado: elas são sociáveis e capazes; com maçãs
elas conquistam e celebram suas primeiras amizades; e como era de se esperar, é
a maçã que estabelece o dilema no fim do filme e redime a diretora de
subjetivismo tendencioso e frieza no desfecho. A personagem que encara a
“maçã-dilema” no final é a mãe de Massoumeh e Zahra. Embora apareça pouco na
história, ela é talvez a personagem mais intrigante e mais difícil de ser
julgada unilateralmente. Ao mesmo tempo vítima e algoz, através dela a diretora
retrata os dilemas da mulher iraniana, cerceada pela violência simbólica da
tradição religiosa. Ela é cega e, como se não bastasse, anda sempre com o rosto
encoberto. Diríamos que ela é duplamente cega: por uma causa natural e por
outra cultural. O trauma que ela causa às meninas não é por maldade, e sim por
ignorância. Pensa ela, fundada em preceitos morais e religiosos, estar fazendo
o bem.
A sensação geral que o
espectador tem dessa mãe no decorrer do filme não poderia deixar de ser de
ojeriza, já que, mesmo sem más intenções, ela arruinou a existência das
crianças. No entanto, Samira busca mediar, em suas operações formais, um
julgamento menos preconceituoso a respeito dessa mulher. Neste sentido, a cena
final do filme é exemplar, e merece um comentário.
O pai, depois da lição
severa da assistente social, deixando-o trancafiado em casa para ele sentir na
pele o desconforto da reclusão, sai com Massoumeh, Zahra e mais duas crianças a
fim de comprar relógios para as filhas em um camelô. Ele avisa à esposa da
saída, mas esta parece não ter escutado. Começa a chamar pelas filhas e o
marido e termina por sair, tateando, de casa. Na rua, sob um pequeno prédio, é
vítima da brincadeira de um menino traquinas, que do segundo andar faz uma maçã
amarrada a um barbante voltear sobre a anciã cega. A poesia que emana dessa
cena ganha força não só pelo simbolismo da maçã, recorrente em todo o filme,
mas pelo modo insólito que a fruta aparece. Temos o enquadramento de uma
deficiente visual resmungando enquanto em seu derredor “flutua” uma maçã, isto
é, uma possibilidade de imersão na vida sem o ascetismo da moral pessimista que
impregna a religião de Alá. O fotograma congela e o filme termina no exato
momento em que a mãe de Massoumeh e Zahra consegue pegar a maçã.
Terá ela mordido a fruta?
Terá ela, assim, imergido numa vida mais livre, mais saborosa? São respostas
imprevisíveis e mesmo inúteis à economia formal do filme – e acerta a diretora
em deixar este ponto em aberto, obrigando o espectador a co-participar
reflexivamente da criação. Mas a lição de ética e de arte que Samira Makhmalbaf
nos acaba de ofertar decerto irá reverberar em nossa consciência e nossa
sensibilidade.
2 comentários:
O cinema iraniano é realmente uma descoberta. Um descoberta do Outro e de Si. Assisti A Maçã por sugestão do Prof. Sebastião Lopes (UFPI) e desde então não tiro os olhos do cinema iraniano.
Jeymeson Veloso
Eu comecei a ler isso algumas vezes eu vou terminar de lê-lo quando cheguei em casa, porque agora vem a minha comida, eu espero que eu possa fazê-lo, porque eu adoro a forma como ele começou, espero ler mais coisas desse tipo, enquanto eu estou esperando a minha comida em restaurantes em alphaville
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