Por
estes dias, uma frase atribuída a Tom Jobim não me sai da cabeça: “O Brasil não
é para principiantes”. Não vou aqui explorar a gama de sugestões contidas no
dito de Jobim, mas apenas pedi-lo emprestado para falar desta magnífica
diretora portuguesa: o cinema de Teresa Villaverde não é para principiantes.
Não é, em primeiro lugar, por sua visceralidade difícil de suportar, mesmo por
aqueles que estão afeitos à violência estilizada e paródica do cinema
americano; em segundo lugar, porque se trata de um cinema vinculado àquela
vertente do cinema de autor europeu, com planos lentos e elaborados, pejados de
sugestões simbólicas, e estrutura narrativa quebrada. Não, não estou sugerindo
que Villaverde apenas mova com competência os clichês típicos do cinema de
autor: há nela uma clara busca de novas soluções, na construção narrativa e no
posicionamento da câmera, que não redunda somente em rebarba esteticista.
Teresa
Villaverde, se não for abuso reduzi-la a uma “escola”, pode ser colocada entre
os “discípulos” de Tarkovski, a exemplo de Sokurov e de Béla Tarr (ainda que,
admitamos, num patamar um pouco abaixo, por enquanto, destes dois). Podemos caracterizar esta escola de Tarkovski
por um conjunto de traços estilísticos, como o plano-seqüência, o travelling e
narrativa não-linear e poética, etc. Mas podemos também caracterizá-la do ponto
de vista moral e, resumindo, dizer que tal escola evita a beleza meramente
funcional, que não esteja a serviço da busca da verdade e no contraponto ao
esvaziamento espiritual de nossa época. Então, em última instância, o cinema de
Teresa Villaverde não é para principiantes porque ele exige comprometimento moral
do espectador: não dá para ir a um cinema a fim de “curtir” um filme como Transe (2006). Ou até dá (há, afinal,
todo tipo de espectador que se possa imaginar: uma pessoa me disse que assistiu
9 vezes ao Tio Boonmee do
Apichatpong, enquanto a maioria não o suporta por 20 minutos), mas não foi para
esse fim que o filme foi pensado.
Transe conta a história de
Sónia, uma russa que, cansada do seu país e dominada por uma angústia intensa,
resolver ganhar a vida na Europa, numa trajetória que se inicia na Alemanha e
desemboca em Portugal. Teresa Villaverde constrói uma história bifurcada a que
cai muito bem o nome “transe”, vocábulo que tanto pode indicar momento difícil,
crise, como sugere um estado inconsciente do sujeito, hipnotizado ou dominado
por forças desconhecidas. Transe é
construído com a pretensão de ser, ao mesmo tempo, um filme-denúncia (mostrando
uma poderosa rede de prostituição de emigrantes envolvendo a comunidade
européia) e um filme sobre os subterrâneos da mente, com ressonâncias
metafísicas. Quer mostrar um transe-crise e um transe-hipnose.
Tão
alta pretensão tem seu preço: a sensação de falta de urdidura. Transe é, ao mesmo tempo, um filme
meticulosamente pensado e um filme mal costurado. Não faltou competência
artesanal à autora, mas o salto do social ao simbólico-metafísico custou-lhe
caro. Se, de saída, ela aceitasse a descostura como um dado estético, tudo bem.
Mas não: senta-se em Teresa Villaverde, desde o começo, o esmero da elaboração
prévia, a tentativa de controle total da encenação, a antipatia com o acaso. Há
cenas isoladas em Transe que, sem
sombra de dúvida, estão entre as mais belas e elaboradas que se fez no cinema
pelo menos nos últimos dez anos. Mas o conjunto atinge o paradoxo de ser ao
mesmo tempo bem elaborado e mal urdindo (refiro-me à harmonização dos planos
real e onírico). A impressão que tenho, vendo Transe, é que real e símbolo se sobrepõem ali sem construir uma
síntese.
Como
crítico, costumo falar do que o filme é, não do que poderia ser. Mas desta vez
não resisto: penso que se Teresa Villaverde fosse menos geômetra, se ela não se
aferrasse tanto à tese de que sua protagonista deveria ilustrar a emigrante que
desce, contra a vontade, ao último degrau da dignidade humana, ela teria feito
uma absoluta, incontestável obra-prima. Por exemplo: para que o mau gosto da
cena de zoofilia se não para comprovar que Sónia chegou ao cume da degradação?
O filme pedia a cena ou a diretora queria coroar sua tese?
Duas
observações finais. A atriz que protagonizou o filme (a portuguesa Ana Moreira)
é simplesmente um monstro de talento e coragem. Arrisco a previsão de que
Teresa Villaverde vai chegar à obra-prima, cedo ou tarde. Guardem este nome:
Teresa Villaverde.
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