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sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Nanayo (2008), de Naomi Kawase


Nanayo (2008), como outros filmes da japonesa Naomi Kawase, é uma película sobre a reeducação sentimental, uma jornada em busca de cura interior. Mas se em outros filmes de Kawase o trauma da personagem principal era explicitado – o desaparecimento de um ente querido em Shara (2003), o luto em Floresta dos lamentos (2007) – aqui o motivo é nebuloso. Saiko, a protagonista, deixa o Japão e vai à Tailândia, onde desconhece o idioma local e se comunica com as pessoas, de forma precária, num inglês sofrível. Não se sabe se acidentalmente ou de propósito, ela chega a uma casa em meio ao verde da natureza, numa pequena vila, onde passa a conviver com um diminuto grupo, aprendendo a fazer massagem.

Seu problema ali é menos de ambientação – a natureza generosa do lugar e o comportamento zen das pessoas, todas visivelmente em recuperação de traumas, como Saiko, facilita a adaptação – que de comunicação. O idioma é a barreira. Uma japonesa, um francês e alguns tailandeses buscam se comunicar e aprender entre si rudimentos dos idiomas alheios. Esta impossibilidade de um falar fluido permite à Naomi Kawase explorar um dos pontos fortes de seu estilo: a sinestesia. A dimensão tátil e sonora, nos filmes da diretora, é tão relevante quanto a visual. Texturas, toques humanos, sons da natureza: tudo isto narra em Nanayo. Para isso, contribuem bastante, por um lado, o uso eficaz da câmera na mão (mimetizando a tensão interior de suas criaturas) e por outro, de forma mais relevante, a sensibilidade da diretora em captar os momentos de epifania vividos pelos personagens em situações aparentemente banais. Neste sentido, o cinema de Kawase, de poucos artifícios e muita sensibilidade e leveza, lembra muito aquele dos narradores sensíveis do cotidiano familiar, como Yasujiro Ozu (certamente seu mestre) e o Hou Hsiao-hsien de A viagem do balão vermelho e Café Lumière.

Impressiona como aquilo que é motivo de ostentação técnica e adesão à moda do dia em outros cineastas, quando tocados por Naomi Kawase, parece absoluta necessidade da narrativa. Assim é a câmera na mão, a narrativa não-linear e o apelo sinestésico. Todos estes recursos, em Kawase, reforçam seu estilo intimista, sua capacidade nada vulgar de representar a vida daqueles que se acham numa “crisálida” da qual esperam sair conciliados com o mundo. Conciliação que se dá, em geral, pelo despertar de um sentimento – não sei se digo poético, se digo religioso ou as duas coisas juntas – pela Natureza. Impressiona como ela se recusa a reduzir a natureza à simples moldura agradável de se ver ou à mãe generosa que nos dá o sustento material. Daí o intenso trabalho de sonoplastia sobre os barulhos oriundos da natureza, daí também o simbolismo da terra, do vento e, acima de todos, da chuva. Nos filmes de Kawase a natureza vive.

Nanayo, como outros trabalhos ficcionais da diretora, é ao mesmo tempo “parado” (levando em conta o padrão narrativo dos filmes americanos) e vívido, intenso; destoando da moda do dia, Naomi parte da vida para construir seus filmes e não de sua erudição cinematográfica. Afastando, dessa forma, seus personagens do pastiche, ela os faz extremamente próximos de nós. Não é à toa, portanto, que a dança de Saiko ao final do filme tenha para nós um poder catártico tão intenso.

Coisa rara, Nanayo e os demais filmes de Kawase valem-se do experimentalismo narrativo para aprofundar a compreensão dos sentimentos humanos, em vez de ser (como infelizmente não é raro se ver) mera exibição de picaretas que não conhecem nem a si próprios.    

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Wesley Safadão e Chorão: Frasistas da Era da Auto-ajuda


Cada vez que um aluno meu dá um curtir nessas páginas do Face com frases do Wesley Safadão ou do Chorão fico pensativo. Não sou um alarmista apocalíptico nem um assecla da Ditadura do Bom Gosto: não penso que ouvir músicas da Garota Safada ou do Charles Brown Jr. vá macular ninguém. Mas estranho quando alguém que lê e discute clássicos da literatura em sala de aula escuta o Safadão ou o Chorão atento à “mensagem” das letras, em busca de um norte para vida, elevando-os à condição guru (alguém dirá que é um fenômeno adolescente, no que concordo em parte, desde que a adolescência tenha se estendido até por volta dos 40 anos). Eu fico pensando: como é que o sujeito não percebe ali, naquelas composições e frases de Twitter-Facebook, a banalidade clichê, o mau gosto da imagem, o domínio precário do português. Há fatores ligados ao sistema educacional e à sua precariedade que estimulam e promovem este estado de coisas – e são tantos os motivos que, se eu fosse elencá-los, transformaria este fragmento num tratado. Há também problemas concernentes à esfera individual, que também não são poucos. Mas, se remetermos à questão para um âmbito mais geral, aquilo que Lyotard denominou fim na crença em metanarrativas produz não poucas vezes um indivíduo que, esvaziado de utopias políticas e sem o sentido profundo da vida que metanarrativas como o cristianismo produzem, se apegam ao primeiro refrigério, degradado que seja, que lhe oferecem. Demitimos o trágico e desiludimos das utopias. E ao niilismo alegre que sobreveio é suficiente se apegar a um punhado de frases de auto-afirmação e conselhos sentimentais alinhavados em mau português e com inclinação ao Kitsch. Por isso, no que diz respeito ao que se discute aqui, Safadão e Chorão podem ser mais bem compreendidos não como cantores, mas como contrafações de Roberto Shinyashiki, Augusto Cury & Cia.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Idiots and Angels (EUA, 2008), de Bill Plimpton


Idiots and Angels (2008) representa, na obra do animador americano Bill Plimpton, um salto do sarcasmo ao “american way of life” a uma paragem nova, uma abertura a questões da natureza humana que resvalam em assuntos de natureza religiosa e metafísica, como a graça e a presença do mal. Concebido fora dos grandes estúdios e num esquema de produção quase familiar, Idiots and angels se alinha ao filão do desenho adulto, contrastando o traço “primitivo” a uma atmosfera densa e ricamente alegórica. A premissa do filme é de uma simplicidade exemplar: narra-se a história de um brutamonte mal-humorado, metido em negócios ilícitos, cuja vida prosaica se desenrola entre a cama e um bar decadente; num belo dia, porém, o insólito irrompe: nasce-lhe um par de asas. Não bastasse o absurdo de tal fenômeno, acrescente-se o fato de que estas asas literalmente obrigam o carrancudo a ser bom, a fazer o bem.

Resumindo assim o enredo, pode-se dar a impressão a quem não assistiu ao filme que se trata de uma banal história de redenção, com um fundo moralista. De fato, trata-se de uma história de redenção, mas a sinuosa trajetória rumo à libertação do protagonista passa ao longe de qualquer facilidade. Trata-se, na verdade, de uma narrativa alegórica eivada de símbolos e com uma atmosfera situada entre o expressionismo e o surrealismo. O nó do enredo é a luta agônica do protagonista entre sua natureza intrinsecamente má e a graça recebida (o par de asas) que o forceja a “renascer” um outro homem; há porém um pano de fundo ou norte narrativo que constitui uma deliciosa e ácida sátira social. O núcleo mais persistente dessa sátira é o bar freqüentado pelo homem mal-humorado, um verdadeiro microcosmo habitado por tipos “vencidos pela vida”. Há a rameira envelhecida e solitária; a bela sonhadora que caiu nas mãos de um insensível e atende no bar; e o ganancioso e sem escrúpulos dono do bar e cônjuge da sonhadora. Fora deste ambiente, há o médico sem ética que sonha retirar as asas do homem e transplantá-las em si, para obter os aplausos da comunidade médica e o amor de sua secretária. Aqui neste reduzido mundo Plympton reconstrói a imagem das baixezas e dos sonhos redentores de uma humanidade que, aparentemente, merece menos nosso asco que nossa piedade.

Impressiona como Bill Plympton constrói sua alegoria com total liberdade poética, sem amolgar seu material a nenhum ditame ideológico, embora dialogue de perto com a doutrina da graça (Santo Agostinho) e, visualmente, com a escola expressionista e, até certo ponto, a surrealista. Essa liberdade exorciza qualquer previsibilidade por parte do interlocutor: a história permanece aberta e misteriosa o tempo todo. Mesmo após seu final, não conseguimos discernir a fronteira do onírico com o real. Plympton nos conduz, com incomum poder de sedução, a oscilarmos, hesitantes e estupefatos, entre o mal-estar causado pelas situações insólitas e inexplicáveis, diria kafkianas, e o humor corrosivo que abranda mas felizmente não dilui a visceralidade das imagens que invadem nossa retina. É tentador erguer Idiots and Angels àquele panteão, tão acrescido nesta última década, das obras-primas do cinema de animação.

Dois detalhes devem ser acrescentados. Em primeiro lugar, que o filme prescinde de diálogo e, mesmo assim, nada perde em clareza e dinamicidade, graças ao traço despojado mas exato de Plympton; em segundo lugar, cabe destacar a música, rigorosamente convergente com o enredo, pensada, sem dúvida, para agregar novos dados à compreensão da psique transtornada dos personagens.

sábado, 25 de agosto de 2012

Divagações antropológicas sobre a identidade piauiense II: Torquato-Faustino-Dobal


Torquato Neto é a miragem cosmopolita da caricatura que o artista piauiense quer ser no plano cultural. Por que caricatura? Porque se ignora, aqui, o atraso social como dado que influi na produção e na circulação do produto artístico. Bem como se ignora a dinâmica das trocas simbólicas (Bourdieu) que são significativas na definição do status e da importância do artista.

Mário Faustino é o emblema da saída pelo universal: para ele converge o sonho – às vezes dramaticamente honesto, às vezes eivado de pedantismo ou ressentimento – do artista piauiense que abdica do debate local.

H. Dobal é a força sublimadora que soube, numa atitude estóica, reelaborar a pobreza e a subserviência piauienses em matéria de arte, uma arte ao mesmo tempo solar e trágica, sensível a força do tempo e a pequenez do homem, sensível ao dilemas sociais que cerceiam o sertanejo, mas sem um laivo de derrotismo. Algo próximo do amor fati nieztscheano.

(Obviamente, nem Torquato nem Faustino tomaram essa demanda do dilema regionalista para si. Mais óbvio ainda que o fato de Dobal ter assumido esta demanda  não o fez nem melhor nem pior como poeta. Não se trata, enfim, de um dado estético)


Divagações antropológicas sobre a identidade piauiense




“E o que mata é, justamente, a humildade. Dirão vocês que o Piauí tem a modéstia do pequeno, sim, a modéstia do pobre. Já contei, aqui, o que ocorreu no Vaticano. Uma senhora brasileira foi recebida pelo papa. Poucas palavras. Ao se despedir, Sua Santidade pediu, num sussurro: - "Reze por mim". Podia ter essa humildade porque era o papa”.
(Nelson Rodrigues, na crônica mui acertadamente intitulada “Nunca houve tamanha solidão na Terra”).

Se quisermos brincar de arquétipos – ainda que estes não sejam ferramentas heurísticas lá muito confiáveis –, podemos afirmar que há dois arquétipos básicos para identificar o sujeito piauiense: o vaqueiro com sua solitude e o pedreiro com sua solicitude. Ambos de uma fidelidade canina.  Tal fidelidadeporém, degenera facilmente, muito facilmente, em subserviência.  É difícil encontrar um típico piauiense – digo, aquele sujeito interiorano, não estudado em excesso nem corrompido pelo dinheiro fácil – que não que se porte com uma lealdade que trilha na linha tênue entre o prestativo e o subserviente. Mesmo nos círculos dos bem situados economicamente ou na vida acadêmica, longe portanto desse utópico e fantasmagórico “típico”, é fácil encontrar piauienses subservientes.
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O piauiense é um pernambucano desfibrado.
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A Irene do poema de Manuel Bandeira nasceu no semi-árido do Piauí.
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Quando o piauiense supera a subserviência ele não raras vezes cai no auto-fechamento orgulhoso.
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O piauiense, como o cearense, tem uma vocação notável para o humorismo de natureza auto-irônica. Isto significa às vezes auto-depreciação como mecanismo de defesa; mas às vezes, na maioria das vezes, significa: ser capaz de um olhar minimamente distanciado e sem comiseração sobre si próprio. Aí se concentra boa parte de sua dignidade.
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O piauiense nunca coloca os dois pés no chão: ele não está bem está onde está mas não quer voltar para onde esteve.
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Em geral, o piauiense só concebe três saídas existenciais no plano da realização pessoal: o estudo, São Paulo (ou sua variante: Brasília) e o Armazém Paraíba.
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Teresina, a capital do Piauí, é maior deserto intelectual de pessoas obsessivamente estudiosas do Brasil.
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Quase tudo o que de bom se produziu no Piauí em termos culturais tem a marca daquilo que os piauienses mais querem se livrar: suas raízes patriarcais, conservadoras, anti-modernas.
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quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Transe (2006), de Teresa Villaverde


Por estes dias, uma frase atribuída a Tom Jobim não me sai da cabeça: “O Brasil não é para principiantes”. Não vou aqui explorar a gama de sugestões contidas no dito de Jobim, mas apenas pedi-lo emprestado para falar desta magnífica diretora portuguesa: o cinema de Teresa Villaverde não é para principiantes. Não é, em primeiro lugar, por sua visceralidade difícil de suportar, mesmo por aqueles que estão afeitos à violência estilizada e paródica do cinema americano; em segundo lugar, porque se trata de um cinema vinculado àquela vertente do cinema de autor europeu, com planos lentos e elaborados, pejados de sugestões simbólicas, e estrutura narrativa quebrada. Não, não estou sugerindo que Villaverde apenas mova com competência os clichês típicos do cinema de autor: há nela uma clara busca de novas soluções, na construção narrativa e no posicionamento da câmera, que não redunda somente em rebarba esteticista.

Teresa Villaverde, se não for abuso reduzi-la a uma “escola”, pode ser colocada entre os “discípulos” de Tarkovski, a exemplo de Sokurov e de Béla Tarr (ainda que, admitamos, num patamar um pouco abaixo, por enquanto, destes dois).  Podemos caracterizar esta escola de Tarkovski por um conjunto de traços estilísticos, como o plano-seqüência, o travelling e narrativa não-linear e poética, etc. Mas podemos também caracterizá-la do ponto de vista moral e, resumindo, dizer que tal escola evita a beleza meramente funcional, que não esteja a serviço da busca da verdade e no contraponto ao esvaziamento espiritual de nossa época. Então, em última instância, o cinema de Teresa Villaverde não é para principiantes porque ele exige comprometimento moral do espectador: não dá para ir a um cinema a fim de “curtir” um filme como Transe (2006). Ou até dá (há, afinal, todo tipo de espectador que se possa imaginar: uma pessoa me disse que assistiu 9 vezes ao Tio Boonmee do Apichatpong, enquanto a maioria não o suporta por 20 minutos), mas não foi para esse fim que o filme foi pensado.

Transe conta a história de Sónia, uma russa que, cansada do seu país e dominada por uma angústia intensa, resolver ganhar a vida na Europa, numa trajetória que se inicia na Alemanha e desemboca em Portugal. Teresa Villaverde constrói uma história bifurcada a que cai muito bem o nome “transe”, vocábulo que tanto pode indicar momento difícil, crise, como sugere um estado inconsciente do sujeito, hipnotizado ou dominado por forças desconhecidas. Transe é construído com a pretensão de ser, ao mesmo tempo, um filme-denúncia (mostrando uma poderosa rede de prostituição de emigrantes envolvendo a comunidade européia) e um filme sobre os subterrâneos da mente, com ressonâncias metafísicas. Quer mostrar um transe-crise e um transe-hipnose.

Tão alta pretensão tem seu preço: a sensação de falta de urdidura. Transe é, ao mesmo tempo, um filme meticulosamente pensado e um filme mal costurado. Não faltou competência artesanal à autora, mas o salto do social ao simbólico-metafísico custou-lhe caro. Se, de saída, ela aceitasse a descostura como um dado estético, tudo bem. Mas não: senta-se em Teresa Villaverde, desde o começo, o esmero da elaboração prévia, a tentativa de controle total da encenação, a antipatia com o acaso. Há cenas isoladas em Transe que, sem sombra de dúvida, estão entre as mais belas e elaboradas que se fez no cinema pelo menos nos últimos dez anos. Mas o conjunto atinge o paradoxo de ser ao mesmo tempo bem elaborado e mal urdindo (refiro-me à harmonização dos planos real e onírico). A impressão que tenho, vendo Transe, é que real e símbolo se sobrepõem ali sem construir uma síntese.

Como crítico, costumo falar do que o filme é, não do que poderia ser. Mas desta vez não resisto: penso que se Teresa Villaverde fosse menos geômetra, se ela não se aferrasse tanto à tese de que sua protagonista deveria ilustrar a emigrante que desce, contra a vontade, ao último degrau da dignidade humana, ela teria feito uma absoluta, incontestável obra-prima. Por exemplo: para que o mau gosto da cena de zoofilia se não para comprovar que Sónia chegou ao cume da degradação? O filme pedia a cena ou a diretora queria coroar sua tese?

Duas observações finais. A atriz que protagonizou o filme (a portuguesa Ana Moreira) é simplesmente um monstro de talento e coragem. Arrisco a previsão de que Teresa Villaverde vai chegar à obra-prima, cedo ou tarde. Guardem este nome: Teresa Villaverde.  


terça-feira, 21 de agosto de 2012

Neto e o comentário futebolístico



                                                          

Comentário futebolístico só é interessante ou quando estetiza o futebol, transformando-o em arte (Nelson Rodrigues) ou quando o analisa pelo viés tático (Paulo Vinícius Coelho, André Rocha, Eduardo Cecconi), demonstrando a racionalidade da guerrilha que se desenrola no campo. Infelizmente, a maioria dos que falam de futebol na grande mídia não têm talento nem para uma coisa nem para outra e, assim, ficam tagarelando, a remendar caprichos com desleixos numa teia tanto insípida quanto inútil. Neto é um desses tagarelas. Enquanto não tinha aprendido sequer o básico dos cacoetes jornalísticos, o programa apresentado por ele, Os Donos da Bola, possuía um humor involuntário que dava toda a graça ao programa. Entre uma opinião sensata e cinco entre consensuais e tolas, Neto tropeçava no cenário, no português e no bom senso, e assim ríamos com ele (e não exatamente, pelo menos não necessariamente, dele). Mas agora, à medida que o ex-craque se profissionaliza, esse humor escasseia. Se Neto um dia aprender a simular completamente os trejeitos de um jornalista profissional, adeus humor. E, desaparecendo o humor, o que sobra é um falastrão querendo fazer o papel de franco atirador quando, na verdade, não tem a mínima coragem de arriscar-se. Fala, por exemplo, que Rogério Ceni é um grande goleiro e que Elton é um atacante perna-de-pau; critica a cúpula administrativa do Palmeiras e do Flamengo e elogia a do Corinthians e a do Inter. Ou seja, diz aquilo que é unanimidade até na Lua. Elogiando o que é consenso, Neto sobressai-se apenas pelo mau gosto dos elogios exagerados e pela elevação da voz acima do bom senso, muitas vezes acompanhada de gesticulação espalhafatosa, como se ele estivesse falando em um palanque. Neto levou ao programa de esportes aquela postura de justiceiro, quase sempre pseudomoralista, dos programas policiais. O que é bom em seu programa é só aquela espontaneidade caipira que o leva a dizer aqui e ali um gracejo inconveniente para o circo televisivo ou dar uma opinião típica da irresponsabilidade que nos assalta em mesa de bar: isso faz com que nos sintamos próximo dele, dá a sensação de que de futebol todos entendemos. Mas Neto é tão tonto que está tentando apagar esse seu estilo naïf: tem lutado para se tornar um profissional. Espero, sinceramente, que ele nunca se profissionalize.

O intelectual de província


Digo intelectual de província, e quero dar a esta expressão um sentido diferente do termo intelectual provinciano. E para diferençá-los é preciso explicitar minha leitura do provincianismo.

Durante algum tempo, pensei o fenômeno do provincianismo nos moldes que Nietzsche refletiu sobre o cristianismo em sua Genealogia da moral, isto é, eu lera o provincianismo pela lente do ressentimento. O provinciano é um sujeito ressentido com o centro, e incapaz de dar uma vazão nobre a este sentimento; bajula servilmente os intelectuais do centro, compra suas idéias sem pestanejar, para sublimar um ódio e uma inveja que ele raramente tem coragem de assumir. Ergue, assim, seu aparamento cultural em seu terreiro e, aproveitando o baixo nível do debate local, passa a cantar de galo.

Ainda pensarei assim hoje? Em linhas gerais, sim. Mas é preciso matizar o argumento. O provincianismo tem causas históricas muito visíveis, está enraizado na própria diferença econômica e cultural com que se foi constituindo os estados brasileiros; sendo assim, a reação provinciana é no mínimo compreensível. E, aqui e ali, ela deu seus bons frutos. Pernambuco que o diga. Se bem que Pernambuco é (ou pelo menos foi) uma espécie, digamos, de província imperialista.

O provincianismo é a filosofia do intelectual provinciano. Quanto ao intelectual de província, trata-se em geral de um degredado. A província não o olha ou ele não olha pra província: de qualquer modo, não se entendem; o centro sequer sabe de sua existência. Ele pode viver esta situação de várias maneiras: sossegadamente, aproveitando o anonimato para criar com mais liberdade; num autofechamento orgulhoso que pouco ajuda; numa melancolia autocomplacente; ou ainda em constante pé de guerra contra tudo e todos. Qualquer que seja a possibilidade, o risco de considerar-se um gênio incompreendido é uma tentação perigosa, que em geral leva ao desastre artístico e pessoal. O intelectual de província, plantado em um rincão que considera inóspito e com a cabeça sempre alhures, é ciente de viver com as “idéias fora do lugar” (Schwarz). Vive dramaticamente, mesmo quando disfarça, esta condição. E pior: como se estive em uma mise en abyme, ele habita uma província dentro de uma província maior. Afinal, ele é brasileiro.

A tecnologia de que dispomos hoje, sobretudo a Internet, ajuda o intelectual de província. Mas não o redime. Seria, aliás, bastante desejável um estudo sobre o impacto da Internet nos debates intelectuais das províncias.

domingo, 19 de agosto de 2012

Borges e a condenação do romance


Jorge Luis Borges não apenas jamais escrevera um romance como considerava, ainda que com alguma hesitação, que este gênero não passava de uma degeneração da epopéia. Para ele, a distinção qualitativa mais notória entre a epopéia e o romance não vem a ser a diferença entre prosa e verso. O fator está no tratamento dado à figura do herói.

Na epopéia, o herói é “um homem que é modelo para todos os homens” (In: Esse ofício do verso, 2000); a essência do romance centra-se, por outro lado, na “aniquilação de um homem, na degeneração do caráter” (idem). Ou seja: as narrativas de nossa época abdicaram do heroísmo, da vitória, da felicidade (um romance moderno com final feliz só é possível na cultura do baixo entretenimento). Mesmo a nossa poesia, na medida em que se “liricizou” e abdicou de narrar aventuras, degenerou-se um pouco também.  Na era do romance, o narrador deixou de fabular aventuras capazes de congregar a comunidade e passou a se guiar pelo critério da inventividade (de novas técnicas narrativas, de novos enredos). Invariavelmente, porém, o romance conta uma mesma e monótona história: a narrativa de uma Queda.

Por esses traços, o romance não consegue aplacar nossa sede de aventura e heroísmo, que é uma necessidade estrutural do espírito humano. “As pessoas” – afirma Borges – “estão famintas e sedentas de épica” (idem). Se não o romance, quem então procurou suprir essa nossa carência estrutural de narrativas heróicas?

Numa época em que vogavam as críticas mais unilaterais e devastadoras sobre a assim chamada “cultura de massa”, Borges não hesita em responder: “[...] foi Hollywood que abasteceu o mundo de épica. Por todo o globo, quando as pessoas assistem a um faroeste – observando a mitologia de um cavaleiro, e o deserto, e a justiça, e o xerife, e os tiroteios etc. –, imagino que resgatem o sentimento épico, quer tenham consciência disso ou não” (idem).

As idéias de Borges sobre o romance convergem em muitos pontos com as de Hegel, Bakhtin, Lukács e, principalmente, Benjamin (autores, aliás, que possivelmente Borges não gostaria de ver seu nome associado, com exceção talvez de Benjamin). Um confronto de suas idéias com a desses outros autores seria muito enriquecedor e serviria para estabelecer o que de contribuição pessoal o argentino traz para o debate.

sábado, 18 de agosto de 2012

Fé e cinema


Não considero justo se duvidar do fervor religioso do cineasta católico Franco Zeffirelli, que foi, aliás, cenógrafo de muitas importantes cerimônias papais. Mas, revendo trechos de um filme seu, percebi o abismo que há entre o que se crê e o que se plasma na forma artística. Na verdade, Zeffirelli, a meu ver, só comove os já religiosos. Andrei Tarkovski, não: faz vibrar até a mais adormecida fé. De brincadeira, disse a um amigo certa vez que Tarkovski, como Bach, era uma máquina de comover hereges. Vejo que Zeffirelli nem sempre encontra, na linguagem cinematográfica, recursos adequados para nos persuadir de sua fé. Em Tarkovski cada plano desloca nossa percepção habitual e nos empurra, no mínimo, para o Mistério. Esta diferença que eu encontro entre os dois cineastas (comum também em outras artes) me parece que só pode ser bem percebida por quem tem alguma sensibilidade estética (não obrigatoriamente conhecimento teórico da linguagem cinematográfica). Por isso, é saudável duvidar de quem só vê conteúdo nas obras de arte: há mais conteúdo religioso em Zeffirelli, e isso me enfara (e acho que há de enfarar quem não for um carola).O Deus de Tarkovski é muito mais difícil, mais denso, mais misterioso, menos falastrão - mais interessante.

Ponyo: uma amizade que veio do mar (Japão, 2008), de Hayao Miyazaki


Em suas animações, Hayo Miyazaki produz uma crítica à técnica que, tecnicamente, constitui um deslumbre para os nossos olhos e um saudável susto para nossa imaginação. Tal crítica se assenta num ecologismo cuja mensagem não é das mais novas: a sociedade industrial-tecnológica dessacralizou a natureza, transformando-a em mera fonte de fornecimento de matéria-prima. Miyazaki é um nostálgico; anseia por uma natureza não esquadrinhada pela ambição humana, uma natureza habitada por entidades mágicas e míticas. E aposta na inocência infantil como possibilidade religação (religare) do homem com as forças mágicas da Grande Mãe. Apesar dessa profissão de fé na criança, o mundo adulto não é caricaturado: não há maniqueísmos em Miyazaki, mas apenas um desejo de compreender as ações humanas, mesmo as más.
                                                                                                   
Ponyo (2008), última produção de Miyazaki, mantém esse padrão discursivo, mas troca a magia das florestas pela do mar. Trata-se, diga-se sem rodeios, de uma ousada e bem-sucedida adaptação do conto “A pequena sereia”, de Hans Christian Andersen. Brunhilde é uma peixinha muito curiosa e com cara de gente; Sosuke um menino muito esperto, filho de um capitão de navio, que tem grande apreço ao mar. Brunhilde conhece Sosuke, que a rebatiza como Ponyo; ela se apaixona por ele, prova do seu sangue humano, começa a virar gente, transgride todos os valores que lhe foram repassados. Este “amor” traz um perigo iminente ao planeta e faz com que homens e míticos seres marinhos se encontrem. Ponyo precisa renunciar a sua condição de ser mítico e entregar-se à Sosuke. Ela o faz; tudo fica bem: homem e natureza religam-se.

Ponyo não atinge os píncaros de imaginação apocalíptica de Nausicaa do Vale do Vento (1984), nem a complexa alegoria do crescimento interior juvenil de A viagem de Chihiro (2001), nem a lírica reversão do “adultocentrismo” de Meu vizinho Totoro (1988). Trata-se da obra de um diretor maduro, dono de seus recursos e de sua mitologia pessoal, que não tem por que arriscar. O desfecho parece uma concessão demasiado generosa com o grande público, e fica aquém do arremate belamente trágico d’A pequena sereia de Andersen.
 

A imagem segundo Andrei Tarkovski


A imagem não é certo significado expressado pelo diretor, mas um mundo inteiro refletido como que numa gota d'água.

*
Ela [a imagem] não designa nem simboliza a vida, mas a corporifica.

*
A imagem é indivisível e inapreensível e depende da nossa consciência e do mundo real que tenta corporificar. Se o mundo for impenetrável, a imagem também o será. É uma espécie de equação, que indica a correlação existente entre a verdade e a consciência humana, limitada como esta última pelo espaço euclidiano. Não podemos perceber o universo em sua totalidade, mas a imagem poética é capaz de exprimir essa totalidade.



In: Esculpir o tempo, Ed. Martins Fontes, SP, 1998.


O único mérito dos filósofos...


O único mérito dos filósofos é se ruborizarem, de vez em quando, por serem homens. Platão e Nietzsche são uma exceção: jamais deixaram de se envergonhar de nossa condição. O primeiro tentou nos arrancar do mundo, o segundo nos fazer sair de nós mesmos. Ambos poderiam dar uma lição aos santos. A honra da filosofia fica, assim, salva.

Emil Cioran [trad. Wanderson Lima]

Assim falou Ambrose Bierce


ABSURDO – Declaração ou crença manifestadamente discordante de nossa opinião.    
          
ADVOGADO – Pessoa hábil em burlar a lei.

ANGÚSTIA – Doença causada por exposição à prosperidade dos amigos.

CANHÃO – Instrumento empregado na retificação de fronteiras.

CONGRATULAÇÃO – A civilidade da inveja.

CORSÁRIO – Político dos mares.

DESTINO – A autorização do tirano para o crime e a desculpa do tolo para o fracasso.

FELICIDADE – Sensação agradável decorrente da contemplação da miséria alheia.

IDIOTA – Membro de uma grande e poderosa tribo cuja influência nos assuntos humanos sempre foi dominante e controladora.

LADRÃO – Um homem de negócios sincero.

MARIDO – Alguém que, tendo jantado, fica encarregado de lavar os pratos.


In: Dicionário do Diabo (Artenova, RJ, 1973, Trad. Jorge Arnaldo Fortes)

A arte da citação


Há os que escrevem munidos de tanta informação e leitura que se esquecem de interpretar. O texto tem a vantagem de mostrar caminhos, sugerir fontes bibliográficas preciosas, mas é zero em empenho pessoal. Este é um estilo comum na academia universitária. Há os que tergiversam, mas têm medo da liberdade e chamam logo uma autoridade, para dar à escrita um verniz de erudição. O problema é que a citação fica mal engastada ou, pior ainda, revela uma falha no espírito do escritor, seja a presunção, o exibicionismo ou a ingenuidade. Certa vez, numa polêmica em que me envolvi, um idiota me admoestou: “Você não viu? Eu cito Freud e Foucault, quem é você pra dizer que eles estão errados?”. Este é também um estilo comum na academia universitária: a citação não-encoste-em-mim-que-eu-estou-bem-guardado. Os citados, neste estilo de escrever, tornam-se Leões de Chácara. Outro estilo comum é o do safado que se passa por distraído (ou do distraído que se tornou safado). Ele põe a idéia como dele, ou então, num requinte de crueldade, cita um autor A quando sua verdadeira fonte é um autor Z. Aquela coleção propedêutica famosa da Brasiliense, chamada “Primeiros Passos”, tem muito disso e em palestra é bastante comum. Há também os que não gostam de citar, sem serem nem mal informados nem desonestos. Estes ou escrevem num estilo oracular, cheio de aforismos, dando ao escrito um sentido de revelação (no sentido religioso do termo); ou se expressam de modo antiintelectual, partindo da vida, do burburinho cotidiano. É preciso muita grandeza pra se dar bem nessas duas formas de escrita; é preciso ter lido muito, conversado com muita gente qualificada, freqüentado muito o mundo acadêmico – para depois mandar tudo às favas. Esses estilos de citar me parecem todos desaconselháveis. Um desejo presunçoso quer me empurrar a mostrar a outra face da moeda: o que seria uma boa citação, uma citação correta e adequada. Mas não sou tolo a tal ponto, até porque desconfio que: 1) não há uma, mas várias maneiras de citar correta e adequadamente, dependendo do gênero textual em que se trabalha e a que tipo de leitor o texto se destina; 2) não sou exemplo citador diuturnamente correto. Por fim, como se trata de uma nota sobre citação, gostaria de citar o trabalho mais denso e original que conheço sobre o tema: O trabalho da citação, de Antoine Compagnon. Não se trata de mais um manual de metodologia que classifica os tipos de citação e indica o procedimento de fazê-las; trata-se antes de uma pesquisa interdisciplinar, regida por alguém que se sente à vontade em diversos domínio, como a lingüística, a retórica, a crítica literária e a filosofia.

A arte de deformar filmes


Assistir a filmes pela televisão é semelhante a ler obras literárias mal traduzidas: você pensa que conhece, mas é pura ilusão, pois o que lhe deram foi uma caricatura. Além de acelerar a velocidade dos frames, deturpar as cores originais da película, “censurar” cenas picotando a obra original, a maioria dos canais de TV – não só os abertos, como Globo e SBT, mas mesmo alguns canais da Sky e simulares, como Megapix e Fox – transformam as versões widescreen em full screen, matando a beleza e funcionalidade da mise-en-scène. Ao não ser que seja em canais sérios como a Futura e o Telecine Cult, é melhor não assistir aos filmes transmitidos pela TV. E tome cuidado também ao comprar DVDs, pois alguns não respeitam o formato original da obra. Abaixo, um vídeo mostra as desastrosas conseqüências de passar os filmes para full screen (em tempo: vi este vídeo no blog do Sérgio Alpendre). Entre os que ali depõem contra este absurdo, está ninguém menos que Martin Scorsese.



“Fala, Garoto!”: a cultura universitária hoje


O que é uma aula universitária hoje? Direi cruamente: uma conversa informal, onde qualquer recorrência a termos científicos ou exigência de rigor lógico é logo tachada de pedantismo, e que se parece com o programa do Serginho Groisman: cada um dá sua opinião, relata sua experiência como se fosse a última coca-cola do deserto e, no final, não se chega a lugar algum.  Em nossas universidades, ou a busca da verdade não interessa mais ou a “verdade” é dada de antemão por alguma “causa” nobre pela qual o aluno – e às vezes o professor – está engajado. Em suma, a cultura universitária em que estamos imersos, como bem disse J. Francisco Saraiva, “é uma cultura da conversa: o saber foi destronado pela troca de opiniões ou de perspectivas pessoais sobre o mundo e fragmentos do mundo”.  Na situação atual de nossas universidades, ou o aluno aprende que é natural falar munido apenas de sua minguada experiência ou, se for mais esperto, aceita ser doutrinado pelo professor-vulgarizador do teórico da moda (o que lhe traz bolsas de estudo e outras benesses). O que eu acho mais opressor neste estado de coisas é a pseudodemocracia que nos induz a crer que toda opinião tem igual valor, não importando seu fundamento (ou sua falta de fundamento). Isso significa dizer que o professor que refuta uma opinião infundada ou um juízo errôneo, por mais gentil e sutil que seja em tal refutação, está fazendo inimigos. O professor universitário que se recusa hoje a ser “legalzinho” tem que ter muita coragem: primeiro, para não cair na tentação absurda do autoritarismo; segundo, para enfrentar o exército de inimigos que, a seu contragosto, ele ajudou a formar.

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