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quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O silêncio (Sokout, Irã, 1998), de Mohsen Makhmalbaf


A filmografia Mohsen Makhmalbaf é das mais irregulares e fascinantes do cinema atual. Ele tanto pode executar uma reflexão densa e poética sobre o cinema e sua força de coesão social, como em Um instante de inocência (1996), como partir para um denuncismo ingênuo, ocidentalista e tecnicamente cheio de irregularidades, como em A caminho de Kandahar (2001); pode desfiar um filosofismo meio requentado, como em O grito das formigas (2006) ou atingir o cerne da poesia das imagens através de manipulações simples e de um roteiro sem nenhum desejo doutrinário ou moralizante, como neste O silêncio (1998).

O silêncio é uma obra ímpar cuja singularidade reside, em grande parte, no trabalho inteligente de manipulação dos sons. O artificialismo do filme reside basicamente aí: o som deixa de servir para fins naturalistas e se torna um agente produtor de espaços subjetivos e fonte de simbolismo. No mais, é um desses filmes a que rótulo neo-realista pode ser usado sem parecer demasiado abuso. Ora, o contraste entre a imagem quase sempre naturalista – há momentos que demonstram preciosismo na montagem, sim, mas o plano-seqüência, geradora de “imagem-fato” (André Bazin), que dá sensação de realismo, é o que predomina – e o som artificialmente manipulado gera um efeito estético dos mais interessantes. Diria que O silêncio tenta operar um alargamento de nossas possibilidades de construção da realidade, substituindo a prevalência da imagem na produção de sentidos pelo som. O som é o agente criador, poiético, por excelência do filme. Para entendermos melhor isso, adentremos um pouco no enredo de O silêncio.

Khorshid (sol, em farsi) é um menino cego que vive numa vila no Irã. Seu pai viajou para Rússia e as condições materiais em que vive são das mais precárias. A casa é alugada e o dono ameaça jogá-los fora; Khorshid trabalha como afinador de instrumentos musicais e sua mãe passa o dia pescando. Vê-se a impotência da mãe em lidar com a situação, sempre recorrendo ao filho, pedindo-lhe para falar com o patrão a fim de conseguir o dinheiro do aluguel. O arco temporal do filme cobre cinco dias na vida do protagonista, tempo em que ele ou levará o dinheiro ou será expulso da casa. O enredo resume-se à trajetória casa-trabalho, tendo na ida de ônibus ao trabalho seus momentos (digamos com algum exagero) mais dramáticos.

Detesto resumir enredos de filmes, mas aqui a síntese ligeira acima servirá para alguns esclarecimentos. Cego que é, Khorshid desenvolveu uma audição prodigiosa e, apaixonado por música, mormente pela Quinta Sinfonia de Beethoven, tem a facilidade de transformar em música os barulhos do cotidiano (como disse Ambrose Bierce, barulho é “música não domesticada”). Aqui cabe uma comparação que, em princípio, pode parecer disparatada: a forma como a cegueira é representada em O silêncio e no blockbuster Demolidor - O homem sem medo (Daredevil, EUA, 2003). Em ambos os filmes, a cegueira traz como contrapartida positiva um refinamento de outros sentidos (tato e audição em especial); porém, n’O demolidor o herói, ao tocar nas coisas e fazê-las vibrar, tem a percepção rigorosamente perfeita do ambiente em que se encontra; em O silêncio Khorshid também reconstrói o mundo via audição, mas, enquanto lá a reconstrução é tão exata que a cegueira praticamente deixa de ser um problema, aqui a reconstrução é subjetivo-poética: guia-se pela harmonia dos sons e dá ao portador um mundo diferente daquele percebido pela visão. Arriscando uma generalização a partir dessa macérrima base empírica, diria que temos aí o desenho do contraste entre o realismo ilusionista, de pretensões objetivas, do cinema de entretenimento estadunidense e o realismo poético do cinema de autor iraniano, onde a pretensão de uma representação objetiva do mundo via cinema é rechaçada, quando não denunciada conscientemente nas próprias malhas do filme[1].

Há uma “realidade” que construímos com a visão e outra que o cego constrói via audição. Mohsen Makhmalbaf nos desconcerta lembrando aquela antiguíssima premissa do empirismo segundo a qual, segundo John Locke, nada vem à mente se não passar pelos sentidos. Ora, se me falta um sentido, o mundo para mim será diferente (não se entenda: deficiente). Mas é claro que o filme está longe de ser uma ilustração de uma postura filosófica que já em Kant fora refutada.  O filme, menos que comprovar teses filosóficas, quer é nos mostrar o poder poiético, isto é, criador do ouvido. Um som de um instrumento musical ou uma chuva evocam no cego miríades de possibilidades e, se este cego é uma criança, como é o caso de Khorshid, tudo pode ficar mais poético.

Quando pega o ônibus para ir trabalhar, o protagonista tenta fugir do excesso de estímulos que os sons lhe oferecem, tampando os ouvidos, mas em vão... O medo dele é a atração que a música exerce em seu espírito: ele é capaz de descer antes da parada que deveria ficar para seguir uma pessoa tocando um instrumento ou um rádio transmitindo uma música. Khorshid está cindido entre trabalhar para se alimentar e pagar o aluguel ou seguir a música que alimenta suas necessidades interiores mais profundas. Ao fim, devido a essa hesitação que o distrai e lhe prejudica no trabalho, acaba sendo despedido e despejado de casa. No entanto, numa cena que é um prodígio de técnica e de imaginação, Khorshid finalmente consegue reger a Quinta Sinfonia. A catarse está completa: venceu a música, venceu o Espírito. Venceu o cinema. Venceu a arte.

Mas fica a dúvida: para Mohsen há uma incompreensão mútua, indissolúvel, entre os humanos que são olhos e os que são ouvidos? Sim, mas nem tanto. A cena, em minha opinião, mais bela do filme mostra Khorshid se perdendo (mais uma vez a culpa é da música que ele ouviu e resolveu seguir) da amiga e companheira de trabalho Naderah. Desesperada, sem conseguir encontrá-lo, ela tem uma idéia: fecha os olhos e começa a caminhar se orientando pela audição; nesse ouvir de olhos cerrados ela começa a reconstruir o mundo para si de uma maneira que a aproxima de Khorshid. Acaba, assim, encontrando-o.


[1] Esse problema é muito bem refletido na obra O espetáculo interrompido, de Robert Stam, Rj, Paz e Terra, 1991.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

O público minoritário de poesia – resposta a um amigo


Um amigo me sugere que fale sobre o público minoritário da poesia. Por que tão poucos são os leitores de poesia? Se eu não estivesse tão atarefado e fosse mais prudente pararia para fazer uma pesquisa, pois se trata de uma questão delicada e complexa. Dadas as circunstâncias, deixo meus pruridos de pesquisador de lado e esboço uma resposta das mais breve possíveis.

Antes de tudo, é preciso responder: que tipo de poesia tem público minoritário? Suponho que, como eu, meu amigo esteja pensando na poesia da literatura “oficial”, da “alta” literatura. Pois o cordel (ao menos aqui no Nordeste) e as letras de músicas têm um público cativo que não pode ser desconsiderado. Ambos comunicam experiências vivas aos seus públicos, ambos obtêm respostas empolgadas e empolgantes desse público. Mas a poesia da alta literatura parece que é produzida para o consumo interno: todos os grandes leitores dessa poesia que eu conheço, a começar por mim, também a produzem. Trata-se, sem mais nem menos, de uma seita, como já a chamou Octavio Paz. Por que essa poesia tem um público tão limitado? Arrisco cinco hipóteses, consciente de que darei uma explicação bastante incompleta e nada exaustiva.

Em primeiro lugar, a poesia moderna, pós-baudelairiana, com seu hermetismo, sua metalinguagem, sua ironia autoconsciente, seu horror à experiência comum, é uma poesia que se quer, e se faz, contracomunicativa, uma coisa de iniciados. Quase todas as vanguardas seguiram o mesmo caminho: o gosto pelo hermetismo, o metalinguismo, a experimentação sem freios e o menoscabo pela comunicação. Há exceções, é claro, há os Whitmans, os Nerudas, os Cabrais.

Em segundo lugar, a chamada cultura de massa destronou a poesia (a grande literatura em geral) de sua função formativa-informativa. O prazer difícil da poesia virou coisa de pária – de intelectuais ressentidos, de eruditos nostálgicos, de humanistas esnobes etc. Não concordo nem um pouco que haja uma ruptura radical entre alta cultura e cultura de massa; da mesma forma, não demonizo a cultura massiva. Mas que ela reelaborou espertamente em pautas mais suaves e palatáveis as grandes conquistas formais da alta literatura não resta dúvida.

Em terceiro lugar, há o medo imbecil de certos platonistas de plantão de que a poesia seja corruptora dos bons costumes.

Em quarto lugar, há os platonistas aos avessos que querem reduzir a poesia à pregação política e/ou moral. A poesia como instrumento de promoção da justiça social. É a praga do politicamente correto (que nem sempre é tão correto quanto se pensa).  

Em quinto lugar, há um fenômeno que talvez não seja mundial, mas tipicamente brasileiro: o coro de professores de literatura incompetentes, em todos os níveis de ensino, que vivem repisando o mantra de que poesia é difícil. Estes palradores muitas vezes preferem o romance, penso eu, porque é mais fácil divagar no comentário de obras romanescas do que no de um poema: é quase impossível interpretar um poema sem virar e revirar sua carnadura, sua arquitetura.

Tudo isso são considerações genéricas. Haveria muito o que se falar contra boa parte da poesia que se faz hoje, buscando argumentar que muitos poetas estão se lixando para o fato de que só seus pares os leiam. Mas me furto de tratar disso agora por falta de tempo e de leituras mais sistemáticas das obras de meus confrades.


quinta-feira, 8 de novembro de 2012

9 - A salvação (EUA, 2009), de Shane Acker


Citar – isto é, aludir, parodiar, parafrasear, pastichar – é a regra de ouro de toda obra que queira parecer profunda. Uma pitada de referência mitológica, uma citação bíblica, uma piscada de olho para Homero: pronto, eis que surge uma obra densa, profunda! Raramente se pergunta pela qualidade e a adequação da citação. O simples fato de ali, naquele seriado preguiçoso ou naquele filminho vagabundo, ser notório uma alusão ao Gênesis ou ao Apocalipse é suficiente para se atestar a profundidade da obra.

Se eu pudesse apontar uma única falha nesse belo 9 - A salvação (2009) seria esta: a citação pseudoculta. Apinhado de citações, o filme investe na retomada de um topos consagrado na literatura e no cinema – a vida num mundo pós-apocalíptico, dominado por máquinas perversas. Em 9, a humanidade já foi para o beleléu, engolida pelas máquinas inteligentes gestadas, “para facilitar o progresso da raça humana”, por um cientista (advinha?) de bom coração mas... ingênuo, que não sabia do mal uso que fariam com sua engenhoca.  Antes de morrer, o nobre sábio constrói bonequinhos toscos, aos quais – a velha aliança entre ciência e magia! – doa sua alma, na esperança de redimir seu erro e salvar uma porção da humanidade. O último desses bonequinhos que ganha vida é 9, e é ele o Redentor. Evito aqui relatar o enredo com detalhes, mas posso adiantar que nos nove bonequinhos que protagonizam o filme o diretor e a roteirista concentram notável galeria de arquétipos, através dos quais movem sem pejo um dilúvio de clichês: há o asceta covarde, modelado na fôrma do ressentido nietzschiano, pregando sua moral de rebanho e disseminando seu ódio a tudo que é nobre e forte (embora, ao fim, ele se redima, num dos poucos lances de rebeldia do diretor contra a rigidez dos topoi que ele põe em movimento); há o velho sábio, a femme fatale, o brutamonte idiota; o inventor, o artista-profeta e, claro, o redentor de todos eles.

É preciso dizer que 9 surgiu de um magnífico curta homônimo, também de Shane Acker. Sem dúvida, o curta é infinitamente melhor que o longa, por dois motivos: mantém a mesma soberbia visual e explica pouco. O longa, ao querer explicar demais, mata a poesia por excesso de didatismo, se enrola em clichês, se perde em excessivas alusões (bíblicas, literárias, cinematográficas e até cabalísticas) cuja maior funcionalidade e querer dar um ar cult ao filme.

Na verdade, não vejo por que esse desejo de querer parecer cult. Implico com este fato porque considero que a pretensão desbragada do diretor e da roteirista acabou por abalar o equilíbrio da obra; as inserções cults e os subtextos políticos e metafísicos funcionaram, a meu ver, como ruídos. O que de fato é soberbo em 9 - A salvação é sua concepção visual, desde a constituição do cenário (fruto, não tenho dúvida, de acurada pesquisa histórica), passando pelo designer dos bonecos e máquinas, até a funcionalíssima fotografia, soturna, bastante integrada à atmosfera da obra.

Nunca é demais lembrar que Tim Burton foi o produtor desse filme, e é visível, para quem conhece seu estilo, o peso de sua mão da concepção da obra. Não só isso: Burton levou seu trilheiro favorito, Danny Elfman, que fez o trabalho musical à altura da fotografia e do cenário. Que esses dados, porém, não sirvam para tirar o mérito de Shane Acker; quem tiver dúvida, basta assistir ao curta que deu origem ao filme em discussão. Shane chegou para ficar; aposto minhas fichas em seu próximo longa, independente de quem o produza. Ficarei de olho também na Focus Features, que antes já produzira Coraline e o mundo secreto, uma das melhores animações da década.


quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O cânone e o espaço literário (I)


A leitura de uma entrevista de Harold Bloom (aqui) e de um texto de Miguel Sanches Neto (aqui) me trouxe de volta ao tema do cânone literário.

O culturalismo em voga descobriu cedo que o cânone é menos um problema estético que político. Aliás, estética, na linguagem desmitificadora dos estudos culturais, não passa de uma política mal disfarçada. O cânone é um trambique de machos adultos brancos eurocentristas. A pobreza flagrante desse juízo – que me poupo de contra-argumentar porque já o fiz em outros textos –  tem várias facetas nocivas, das quais uma das piores é a descrença na universalidade do discurso literário. A literatura não fala mais ao Homem (sim, é uma noção complexa e com um largo percurso histórico...); fala ao rico ou ao pobre, ao branco ou ao negro, à mulher e ao homem, ao heterossexual ou ao homossexual.

Na lógica dos estudos culturais, a literatura é uma arena de embates culturais e, portanto, a crítica literária franca não passa de um modo de fazer política cultural. Fico imaginando, e lamentando, os subprodutos literários que nascem no bojo dessas concepções! E não me venham dizer que um J. M. Coetzee ou um García Marquez, por serem queridinhos desses teóricos, compartilham dessas concepções estreitas. Com poucas exceções, os grandes autores do século XX apostaram numa concepção de literatura como um espaço sincrônico e homogêneo, capaz de rechaçar barreiras étnicas, fronteiras nacionais etc. Em Eliot, em Borges, em Valéry, em Octavio Paz, em Nabokov, em Pessoa, enfim, no mais fino que a literatura produziu no século XX, domina a crença de que a literatura é um espaço sem tempo e sem fronteiras. Não um mundo angelical, um espaço apinhado querubins benevolentes – que Pound o diga–, mas, mesmo assim, um mundo aberto ao Homem.

Quanto mais a politização do cânone avança, mais aquela crença decai e mais panfletos em forma de literatura são despejados no mundo. Mas até aí tudo bem: lê estes panfletos quem quer; ninguém está proibido de virar as costas a eles e tomar às mãos um Homero ou um Dante. O problema é quando, em nome da destruição ou alargamento desse cânone, os culturalistas – que, pelo menos nos Departamentos de Letras, são bem representados, não raras vezes sendo o grupo quantitativamente dominante – põe seu aparelho teórico a funcionar sobre a obra de Shakespeare, Camões, Cervantes etc, reduzindo-os a vilões ou mocinhos da ordem política corretinha do dia. Nesta operação, as questões (muito mais amplas e complexas) que estas obras tentaram refletir são escamoteadas, e a leitura deixa de ser descoberta e crescimento interior para tornar-se acerto de contas – dos mais mesquinhos – com o passado. Ora, se o aluno se reduz a ler, na maior parte do tempo, lixo panfletário e quando lê um clássico o faz, por orientação do professor, como um ressentido acerto de contas com o passado, que esperar dessa celeuma: que saiam alunos capazes de avaliar um texto? Capazes de apontar por que o Aleph do Paulo Coelho é uma leitura pobre, reducionista e emburrecedora do Aleph de Jorge Luis Borges?

Não adianta, de jeito algum, ler gigantes com um olhar tão nanico. Não escamoteio as dificuldades, hoje, de se buscar fundamentos e valores universais. Mas sei que o fatiamento do espaço literário em guetos políticos só é solução se quisermos aniquilar a liberdade de escolha e a consciência crítica de nossos alunos – tratando-os como zumbis que precisam ser doutrinados. Dizer que a literatura fala ao Homem é uma ilusão? É quase certo que sim. Mas, pelo menos, os resultados pedagógicos dessa ilusão são mais frutuosos – desde que não se trate de uma adoração a uma imagem estática, desde que este Homem não seja um esquema oco ou uma zombaria a todos e a cada um.


P.S.: Texto escrito em janeiro de 2012. Nunca lhe dei continuidade, mas espero um dia escrever mais a respeito do tema.    

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Orgulho de ser professor?

Orgulho de ser professor? Não. Cumpro este chamado (vocare) com todo o meu ser, num misto de calma alegria e leve desesperança. Sei que gosto de ler e de discutir a respeito do que leio; e penso na aula como um texto colaborativo que construímos meus alunos e eu - texto que sempre nos surpreende, para o bem ou para o mal. Por vezes, me espanto de que me paguem por eu fazer o que eu gosto: ler e conversar. Mas não sei mentir pra mim nem sou masoquista o suficiente pra ter orgulho de ser professor. Não sou nenhuma criatura espiritual, que viva de beber a brisa, nem pairo acima desta história lamacenta construída por essa canalha corrupta que nos governa, muitas vezes com o nosso explícito apoio.

OFERTA QUE DE SI FAZIA A DEUS


[Neste 15 de outubro, louvo a memória da grande Teresa d'Ávila com esta tradução. Leia no idioma original aqui

 
Vossa sou, para Vós nasci,
Que mandais fazer de mim?

Soberana Majestade,
Eterna sabedoria,
Favor tão bom à alma minha,
Deus, alteza, um ser, bondade,
Vês a grande vilandade,
Que hoje os canta amor assim:
Que mandais fazer de mim?

Vossa sou, pois me criastes,
Vossa pois me redimistes,
Vossa pois por mim sofrestes
Vossa, pois me chamastes
Vossa porque me esperastes
Vossa, pois me achei ao fim.
Que mandais fazer de mim?

Que mandais, pois, bom Senhor,
Que faça tão vil criado?
Que ofício haveis dado
A este escravo pecador?
Vede-me aqui, doce Amor,
Amor doce, vede aqui.
Que mandais fazer de mim?

Vede aqui meu coração,
Eu o ponho em vossa palma,
Meu corpo, minha vida e alma,
As entranhas e a afeição;
Doce Esposo e redenção
Pois a Vós é que me vim.
Que mandais fazer de mim?

Dai-me morte, dai-me vida:
Dai saúde ou morbidade,
Honra ou mor desonra dai-me,
Dai-me guerra ou paz crescida,
Fraqueza ou força invencida,
Que a tudo digo que sim.
Que quereis fazer de mim?

Dai-me riqueza ou pobreza,
Dai consolo ou escarcéu,
Dai-me alegria ou tristeza,
Dai-me inferno, ou dai-me céu,
Vida doce, sol sem véu,
Pois a tudo dou meu sim.
Que mandais fazer de mim?

Se quereis, dai-me oração,
Se não, dai-me sequidade,
Se abundância ou devoção,
Se não esterilidade.
Soberana Majestade,
Só aqui há paz por fim.
Que mandais fazer de mim?

Dai-me, pois, sabedoria,
Ou por amor, ignorância,
Dai-me anos de abundância,
Ou de fome e carestia;
Dai-me treva ou claro dia
Envolvei-me aqui e ali.
Que mandais fazer de mim?

Se quereis me ver folgando,
Quero por amor folgar.
Se me mandais trabalhar,
Morrer quero trabalhando.
Dizei onde, como e quando,
Dizei, doce Amor, enfim:
Que mandais fazer de mim?

Dai-me Calvário ou Tabor,
Deserto ou terra copiosa,
Seja Jó em grande dor,
João que ao peito repousa,
Seja vinha frutuosa
Ou estéril, se cumpre assim.
Que mandais fazer de mim?

Seja José em algemas
Ou do Egito adiantado,
Ou Davi sofrendo penas,
Ou já Davi exaltado,
Seja Jonas alagado,
Ou livre do seu confim,
Que mandais fazer de mim?

Seja calando ou falando,
Haja fruto ou não o haja,
Mostre-me a Lei minha chaga,
Goze de Evangelho brando;
Seja penando ou gozando,
Só me habita Eloim.
Que mandais fazer de mim?


Vossa sou, para Vós nasci,
Que mandais fazer de mim?


sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A aula pensada como poiesis


Entre o culto do improviso e o estetismo irresponsável, há uma brecha na qual se situa a aula pensada como poiesis, isto é, como uma atividade produtora situada entre o domínio tácito dos meios e o uso criativo destes – portanto, um uso maduro e, na medida do possível, livre –. Uma aula como work in progress, e não como produto pronto, levado para sala como um se se tratasse de um fast-food ao qual basta abrir a embalagem e consumir; uma aula na qual a porção de incerteza não seja o soldo do despreparo, mas um suvenir oferecido à criatividade. Não sei se este tipo de aula funciona para todas as disciplinas. Em Literatura ela é viável, e mesmo talvez desejável.

sábado, 6 de outubro de 2012

Singularidades de uma rapariga loura (2009), de Manoel de Oliveira


Em alguns artistas, a velhice traz a clarividência de que dizer a verdade consiste, em grande parte, em livrar-se de truques e barroquismos. Manoel de Oliveira, que em dezembro completará 102 anos, pertence a este rol: a cada filme seu, a depuração vai atingindo uma essencialidade franciscana. Depuração, porém, não significa transparência: o sentido dos filmes desse português é, para lembrar a expressão do poeta, um claro enigma. Tudo é posto e disposto numa honestidade brutal e quase ingênua, mas nessa clareza resplandece a luz ofuscante do mistério. É que num estilo essencial qualquer signo que pareça decorativo ou deslocado é logo estranhado, ganhando uma conotação simbólica. Assim é Singularidade de uma rapariga loura (Portugal, 2009): escorreito, contido, mas eivado dessas armadilhas simbólicas.

Quem quer assista a Singularidades sem conhecer o conto homônimo de Eça de Queiroz que o filme recriou, terá um ganho e uma perda evidentes. O ganho, sem dúvida, é o impacto do desfecho (desde o esplêndido Um Filme falado, de 2003, Oliveira não fazia um final tão impactante); a perda é que o conto nos dá um conhecimento prévio da postura moral de Luisa que nos ajuda a perceber com mais discernimento a sutileza de certas cenas.

Na verdade, Manoel de Oliveira não adaptou o conto de Eça de Queiroz, se por “adaptar” entendemos buscar ser fiel ao original, encontrar recursos equivalentes no cinema àqueles que o prosador se valeu na arte literária. Embora correto e elegante, qualidades também evidenciáveis no cinema de Oliveira, o estilo de Eça é pródigo de recursos estilísticos, abundante de adjetivos usados em contextos insólitos, ricos em subentendidos críticos e cômicos (“Tinha o carácter louro como o cabelo...”), irônico nos comentários que tece sobre a sociedade. Na versão cinematográfica do conto realizada por Oliveira, creio eu, ganha-se em sutileza (qualidade que o autor de O crime do Amaro nem sempre ostentou entre suas maiores) o que se perde em ironia ferina e análise social impiedosa. Mas o diferencial maior entre ambas as narrativas talvez seja a discrepância entre a ambição eciana, mesmo no curto espaço de um conto, em constituir um painel social em comparação com a contenção manoelina, que se centra no drama que envolve o casal  Macário e Luisa. Em resumo,  Manoel de Oliveira não viaja ao país de Eça: traz Eça ao seu mundo.

Infidelidade? Penso que, quando se trata de recriar no cinema a obra de um grande escritor, só se é infiel quando se é subserviente à obra literária ou quando se exorciza do filme toda a complexidade da obra literária unicamente com fins comerciais. Naturalmente, os aficionados na prosa de Eça irão desconsiderar o mais de meio século de trajetória artística de Manoel de Oliveira e dirão que o filme é pouco eciano; já os zelosos professores de Literatura talvez considerem, com razão, que seus alunos irão achar o filme enfadonho, com sua mise-en-scène minimalista e os atores recitando o texto, à maneira de Bresson (aliás, a atriz que interpretou a Luisa, Catarina Wallenstein, é uma perfeita “modelo” bressoniana, deixando a leitura das emoções por nossa conta; já o tio de Macário atuou de um modo um pouco excessivo, para os padrões do filme). É quase ocioso dizer que essas opiniões reticentes quanto ao filme não dizem nada sobre o filme em si e, portanto, não podem sequer arranhar a reputação de Manoel de Oliveira.


Singularidades de uma rapariga loura, o filme, arma um expediente narrativo bastante conhecido: o protagonista, numa viagem de trem, conta, ainda amargurado, sua história de amor frustrado a uma desconhecida. Com esse expediente, Manoel de Oliveira concretiza seu propósito estético de narrar apenas o essencial, desobrigando-se de colecionar imagens meramente ilustrativas. O que é inessencial, não vemos – só ouvimos; apenas se filma o estritamente necessário à economia estética do filme e à revelação dos traços psicológicos e morais das personagens (não é à toa, pois, que o filme só tenha uma hora).

            A primeira cena significativa do filme – considerando que as cenas do trem servem primordialmente como muleta narrativa – é sintomática do que enunciei parágrafos acima, isto é, de como o estilo clean e contido do diretor imediatamente desloca à condição de símbolo qualquer signo aparentemente inessencial da encenação. O protagonista Macário (Ricardo Trêpa) contempla, da janela do seu escritório, a bela e misteriosa Luísa (a mão segura um leque chinês, a que o protagonista não cansa de falar em seu relato; os cabelos cobrem um dos olhos; a postura é discretamente dissimulada); nesta hora um discreto ruído de microfonia cede lugar ao repicar de sinos (numa celebração sacral ao amor que nasce, como bem notou o crítico Fábio Andrade); Luísa desce uma cortina translúcida mas não deixa de, através dela, trocar olhares com Macário.  O leque “chinês” (objetivo de conotação simbólica também no conto de Eça), a cortina translúcida, os sinos que repicam – eis aí armada a teia simbólica do filme, embora dificilmente percebamos isso a primeira vez que o vemos. Macário se apaixona por uma imagem, no sentido platônico; isto é, por um eikon, uma sombra, uma ilusão. E ele irá perseverar nessa imagem até a revelação sobre o caráter de Luísa que o desfecho mostrará. Para quem não leu o conto, ou assistiu ao filme distraidamente, a atitude de Macário poderá parecer mais dura do que de fato o foi.

Uma cena sintomática quanto a um ponto basilar que tenho assinalado acerca do estilo do filme – a saber, como no estilo minimalista do diretor qualquer gesto ou objeto “em excesso” ganha força simbólica – dá-se quando Macário decide viajar para Cabo Verde a fim de conseguir o dinheiro necessário para casar e dar uma vida digna para Luísa. Ao comunicá-la pessoalmente sobre a viagem (ela já sabia através de carta), os dois se beijam; no momento do beijo, a câmera foca apenas as pernas de ambos (outra opção que lembra Bresson). Nesta hora, de uma maneira gritantemente forçada e artificial, Luisa levante uma das pernas. Índice do caráter dissimulado de Luisa? Referência paródica a Hollywood? Difícil, ao menos para mim, decidir. É nos pequenos gestos, nos detalhes ínfimos, que Manoel de Oliveira abre clareiras de mistérios em seu estilo clean e quase didático. Uma cena como essa, ainda que não decidamos o seu sentido preciso, nos lembra que há um corpo (há uma mecânica do corpo) e que este pode reagir diante das situações de maneira natural ou de modo maquiavelicamente premeditado. Ou seja: a imagem é dubitável em sua própria constituição. Em última instância, portanto, Singularidades de uma rapariga loura é um filme sobre o caráter ambíguo da imagem, sobre o que podemos (e sobre o que queremos) ver. Quantos de nós já não nos apaixonamos por uma mera imagem (eikon)?
   
A impressa mundial não cansa de apresentar Manoel de Oliveira como um fenômeno exótico (positivo, mas não por isso menos exótico): um simpático velhinho centenário que faz um filme por ano! Mas producente seria indagar como o fator idade influi na economia de seus filmes. Na depuração estilística de seus últimos filmes, por exemplo, isso é inquestionável. E, no caso de Singularidades, no anacronismo evidente dos valores vividos e partilhados pelos personagens. Anacronismo esse que não só corrobora a autenticidade autoral do filme (Manoel, além de dirigir, adaptou a história de Eça e participou do processo de montagem) como nos faculta um distanciamento crítico dos personagens que nos afina a percepção dos valores (nem sempre nobres) que fundamentam nosso modo de vida.


segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Entre Luzes e Sombra (The willow tree / Beed-e majnoon, Irã, 2005), de Majid Majidi


A poesia cinematográfica, freqüentemente, se alimenta de desgraças, individuais ou coletivas, com a mesma falta de cerimônia com que o urubu se alimenta de carniça. No caso do iraniano Majid Majidi, o repasto de miséria chama-se cegueira, tema do qual ele extraiu por duas vezes o néctar da poesia. A falta de cerimônia de Majidi não é tanto a da falta de alteridade (chineses em filmes americanos de artes marciais; índios em westerns John Ford; evangélicos em filmes brasileiros etc), mas a do bom-moço humanista que quer nos convencer com lágrimas. Majidi chega ao vício pelo excesso de virtude, atinge involuntariamente o cômico, em seus momentos ruins, pelo excesso de drama. Mesmo seus críticos mais ferrenhos devem admitir que ele domina a gramática do melodrama poético. E não falo apenas da poética da imagem, mas também a do som, que em Majidi é sempre trabalhadíssima

O primeiro filme de Majid Majidi que tematiza a cegueira (talvez não seja o primeiro, pois há dois filmes do cineasta que não vi) é A cor do Paraíso (1999), onde o virtuosismo do diretor produz cenas antológicas ao lado de outras que osculam involuntariamente o cômico. A cor do Paraíso é uma quase-obra-prima que nos deixa um sentimento de frustração pelo que poderia ter sido, não fosse o excesso de brilho técnico, a floresta de símbolos e duplos e um final de gosto duvidoso que pesam sob um enredo simples. Entre luzes e sombras veio 6 anos depois de A cor e, sem dúvida, esse intervalo serviu para o diretor enxugar sua maquinaria. Isto, porém, não garantiu que brotasse a obra-prima. O avanço do segundo filme em relação ao primeiro dá-se essencialmente em eficácia. Entre luzes e sombras permite com que a sutileza permaneça quase sempre (mas quase mesmo) sutil.

As histórias de Majid Majidi, como eu disse em outro texto, se situam em algum ponto intermediário entre a fábula e a parábola religiosa. Majidi, talvez convenha lembrar, segue a doutrina Sufi, vertente mística do islamismo. A moralidade e o sentido de redenção atravessam sua filmografia de ponta a ponta e isso, pelo menos no Brasil, desagrada à crítica, por lhe parecer simplificador demais, talvez otimista demais. Ser do mesmo país de Abbas Kiarostami torna a visão de mundo moralizadora de Majidi, bem como o convencionalismo clássico de seus planos, um tanto mais incômodos.

Mas Majidi segue sem se incomodar, e faz bem. Encena uma história cuja estrutura profunda conhece bem com recursos que domina como poucos. O resultado é Entre Luzes e Sombras: uma fábula sobre a redenção boa de assistir, que revela seu tom de melodrama poético desde a primeira tomada. A novidade aqui é que Majidi abandona as crianças e a pobreza para abordar a vida de um professor universitário cego que, depois de trinta e tantos anos, passa por uma cirurgia na França e começa a enxergar. Mas, se isto à primeira vista foi considerado uma bênção, aos poucos se torna fonte de perdição: para usar uma imagem de gosto bastante duvidosa, abrem-se os olhos da face, fecham-se os olhos da alma. O ex-cego resignado desgarra-se de Alá, ardendo de orgulho e constrangido pelo trabalho extra que deu aos outros quando cego, abandona a profissão, despreza a família, peca por omissão (assiste a um furto calado) e adultera (em pensamento). De fato, para o filme, o olho é a janela do pecado.

Tecnicamente, Majidi é muito feliz nas passagens mais essenciais da película: quando altera a perspectiva objetiva da câmera para um foco subjetivo, colado na perspectiva do protagonista, a fim de acentuar o contraste de percepção do mundo entre o cego de outrora e o ex-cego de agora; quando dilata o tempo na cena do aeroporto para intensificar o drama do ex-cego que tenta descobrir na multidão que são sua mãe, sua esposa e sua filha; quando repõe a formiga, símbolo da conformidade social e da ação de massa, no desfecho, deixando a sugestão que Alá deu o dom, tomou-o para educar o rebelde e devolveu-lhe quando este aprendeu, pelo sofrimento, a usá-lo para o bem.    

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Nota sobre A FICÇÃO E O POEMA, de Luiz Costa Lima




Em A ficção e o poema, lançado em agosto de 2012, Luiz Costa Lima dá prosseguimento à sua indagação da mímesis iniciada em Mímesis e modernidade, de 1980, e retomada em livros como Vida e mímesis (1995) e Mímesis: desafio ao pensamento (2000). A reconsideração daquele conceito tem levado Costa Lima, ao longo de mais de três décadas, a reelaborar categorias básicas do pensamento – não apenas estético, diga-se de passagem – do Ocidente, engendrando noções conceituais e hipóteses importantes como as de mímesis da representação e mímesis da produção, controle do imaginário, sujeito fraturado, representação-efeito e agora, neste novo livro, o conceito de mímesis-zero, inicialmente sugerido ao autor por duas colaboradoras, Aline Magalhães Pinto e Laíse Araújo.

A ficção e o poema é composto por um preâmbulo – em que o autor, apoiado em Kant, Freud e René Girard desenvolve a noção de mímesis-zero – e três partes de maior fôlego, relativamente independentes entre si. O que vem a ser a mímesis-zero? Costa Lima, ao fim do preâmbulo, após passar pelas contribuições do trio há pouco citado, resume a questão: “Mímesis-zero equivale a dizer que não contém figuras ou linhas de força configuradas. Ela é um como se, isto é, algo que, em estado de gestação, se for plenamente diante, será um objeto ficcional. Mímesis sem movimento porque mera potencialidade. Enquanto potencialidade, ela é uma mancha ou nebulosa tocada pela libido. A junção entre mancha psíquica e libido significa que algo ou alguém, uma paisagem ou quem a atravessou, ali deixou uma marca que, por enquanto, provoca tão só uma impressão, no entanto duradoura” (p. 26). Infelizmente, o potencial que a mímesis-zero abriga tende antes a se dissipar do que a se condensar em obra – isso porque à sociedade interessa mais que a tradição se confunda com um depósito de estereótipos, pois assim seus membros se tornam mais ordeiros e menos questionadores. A sensação de insuficiência de teorização da mímesis-zero é notória, mas como sabemos que cada livro de Costa Lima, pelo menos desde Mímesis e modernidade, retoma e aprofunda o seguinte, é quase certo que o autor retomará o problema.

Na parte I, Costa Lima se debate com Adorno e Derrida – naquele o autor brasileiro vislumbra uma proposta estética autoritária e com ressaibos teológicos que, ao exasperar o confronto da arte autônoma com a sociedade, acaba por tornar-se o reverso de uma teoria mimética da arte, ainda que o alemão tenha se ocupado com a mímesis; no pensador francês Costa Lima aponta, após um estudo cerrado de ensaios seminais como “La double séance” e “La mythologie blanche”, o equívoco de conceber a mímesis como o avatar da metafísica da presença. Contra o antirrepresentacionalismo de Derrida e a negatividade estética de Adorno com sua absoluta autonomização da arte, Costa Lima propõe, como vem fazendo desde Mímesis: desafio ao pensamento, que se tome a representação não como uma imagem fiel de algo prévio que se forma em um sujeito passivo, mas como o efeito da interação entre as propriedades de um objeto ou uma cena com as propriedades do sujeito (daí o uso, por parte do autor, do termo representação-efeito). Ora, essa noção de representação-efeito, que Costa Lima deve muito a Wolfgang Iser, como ele mesmo reconhece, afasta a mímesis da “metafísica da presença” (Derrida) sem que seja preciso admitir, como faz o filósofo francês, que o texto literário é uma deriva sem pouso, um eterno adiamento do encontro entre signo e referente.  

A parte II versa essencialmente sobre a questão da poesia em Heidegger; aqui Costa Lima demonstra que o discurso do filósofo acerca da poesia é menos demonstrativo que persuasivo (basta observar-se a linguagem nitidamente epifânica – quase uma “retórica sacra” – do pensador alemão). Assim, por exemplo, a postulação heideggeriana de que a poesia instala para o homem a morada de seu ser é nada menos que uma arbritariedade cujo pano de fundo é a entronização do poeta, do pensador e do chefe de Estado (criadores por excelência), reduzindo as demais criaturas – técnicos, cientistas, o homem cotidiano – à condição de instrumentos para aqueles. Deve-se, ainda, ao menos sob um ponto, desconfiar-se da entronização do poeta levada a cabo pelo pensador germânico: ainda que reconheça na poesia a dignidade reflexiva, Heidegger acaba fazendo com que suas análises de poetas, especialmente de Hölderlin, seja tão só a corroboração do pensamento ... de Heidegger. Costa Lima não hesita em afirmar que “a poética proposta por Heidegger não se limitava a exaltar seus próprios filosofemas, senão que convertia a arte em porta-voz de uma Alemanha por ele mesmo privilegiada” (p. 154). Daí que o brasileiro corrobore a asserção de Lacoue-Labarthe de que a poética de Heidegger constitui, na verdade, um “nacional-esteticismo”.

Na parte III, Costa Lima busca concretizar suas teorizações a partir da análise da obra poética de quatro autores: Antonio Machado, W. H. Auden, Paul Celan e Sebastião Uchoa Leite. O ponto alto dessas análises é, sem dúvida, a parte dedicada a Celan, onde a reflexão sobre assuntos controversos como a relação entre ficção e poema, ou questão da metáfora, ou as relações entre poesia e biografia atinge píncaros de agudeza e complexidade.  

Luiz Costa Lima nasceu em São Luís do Maranhão, em 1937, tendo sido levado ainda muito jovem para Recife. É professor emérito da PUC-RJ. Recebeu da Alexander von Humboldt-Stiftung (Alemanha), em 2004, o prêmio de pesquisador estrangeiro do ano, na área de Humanidades. Em 2011, a Universidade de Queensland (Austrália) realizou o colóquio “Mimesis and culture”, dedicado à sua obra. 

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

A MAÇÃ (IRÃ,1998), DE SAMIRA MAKHMALBAF


[Reproduzo aqui este texto de 2010 em homenagem àqueles que tem acompanhado a Mostra de Cinema Iraniano na Casa da Cultura]


Samira Makhmalbaf dirigiu o filme “A maçã” (Sib, 1998, Irã / França) quando tinha apenas 17 anos, sendo a mais jovem cineasta até hoje a concorrer a prêmio no Festival de Cannes. Dois anos depois, com “O Quadro Negro” (Takhté Siah), ela ganharia o Prêmio Especial do Júri daquele festival francês, tendo o seu nome definitivamente ganho projeção mundial.

“A maçã” narra a história verídica de duas irmãs, Massoumeh e Zahra, trancafiadas em casa pelos pais - uma senhora cega e um senhor desempregado - durante 11 anos, o que as levou a um processo de retardo mental. A prisão domiciliar era justificada por uma passagem de um texto religioso segundo o qual as jovens são como pétalas, que fenecem ao contato do sol. No filme, acompanhamos o drama dos pais (do pai, principalmente) para não ver as filhas ficarem sob a tutela do Estado. Ele tentará ensinar as meninas a desenvolver habilidades essenciais, como varrer o terreiro e fazer comida, para provar a uma assistente social que elas devem ficar com a família. O instigante é que não só a história das irmãs é verídica como os envolvidos no drama representam a si mesmos no filme. O pai, por exemplo, aceitou representar a si mesmo por acreditar que, assim, poderia defender seu nome, que fora, em sua opinião, caluniado pela imprensa, quando o caso veio à tona. É a própria Samira que diz, numa entrevista concedida no Brasil: “Começamos a fazer o filme apenas quatro dias depois que toda a imprensa abriu espaço para a história. Isso significa que o que foi captado, nesse curto período de tempo, era o real, ou as conseqüências sociais e psicológicas do acontecido”.

Esse esfacelamento das fronteiras entre ficção e documentário, que leva ao hibridismo das imagens, ora em um registro bruto, ora com um zelo pictórico incomum, é nítida influência, na jovem cineasta, de Mohsen Makhmalbaf, que é seu pai e assinou o roteiro do filme, e de Abbas Kiarostami. Há um conjunto de filmes feitos no Irã que, valendo-se desse hibridismo, se refestela na reedição do neo-realismo italiano, apresentando histórias filmadas com amadores, denúncia social, mensagens humanistas, preferência pelo plano-seqüência e uma insistência em mostrar, nem sempre por necessidades estéticas, a beleza das paisagens iranianas em planos gerais de tirar o fôlego. É a vertente que nos deu, por exemplo, o Majid Majidi de “A cor do paraíso”, o Bhaman Ghobadi de “Tempos de embebedar cavalos” e o Mohsen Makhmalbaf de “Caminho de Kandahar”. São filmes belos, minimalistas, movidos pela crença implícita de uma transparência simbólica da representação cinematográfica, a decantada idéia do cinema como a arte realista por excelência, como defendia André Bazin. A adesão de Samira a um realismo de imagens híbridas vai além desse realismo, digamos, convencional: passa por uma crítica da auto-evidência da imagem e por um questionamento radical sobre o papel do cinema e os limites entre o ator e a pessoa real. Ou seja, “A maçã” deriva do grande Abbas Kiarostami de “Close-up” (1990) e do Mohsen Makhmalbaf de “Um instante de inocência” (1996).

À primeira vista, “A maçã” pode chocar, porque Samira é avessa a ornamentos e melodrama. Sente-se, durante toda a história, que a diretora, mesmo tratando de uma situação dolorosa e aberrante, não nos quer fazer chorar. A precisão e a lentidão da fotografia convidam à reflexão, à apreciação racional. Samira vale-se do distanciamento, evitando que façamos julgamentos emotivos ou unilaterais. Trata-se de um filme polifônico, no sentido bakhtiniano do termo: ali estão presentes a ótica da família, a da vizinhança e a do Estado, na figura da assistente social. A diretora penetra nos dramas humanos evitando simplificações: não há um culpado, há culpados. Fica sugerido que é a própria estrutura do país - seu modelo de educação, sua moral, seu machismo - que produz as condições que geram casos aberrantes, como o que é analisado no filme.

A primeira cena do filme apresenta bem o estilo da diretora: vemos uma mão que tenta, com dificuldade, regar uma plantinha. Há um impedimento, a mão peleja, mas só uma parte da água cai no vazo. Mais adiante, saberemos que o impedimento fora oriundo de problemas de coordenação motora, já que Massoumeh e Zahra não foram socializadas na idade certa. As irmãs serão como essa tênue planta, e só poderão ser “regadas” quando a mão da coletividade agir. Isto se confirma na cena seguinte, que apresenta os pais das irmãs, significativamente, de costas: deles, talvez, elas não possam esperar serem “regadas”. A seguir, vemos um documento, um abaixo-assinado, em que os vizinhos denunciam a situação de Massoumeh e Zahra às autoridades. A última assinatura é justamente de Samira Makhmalbaf que, assim, assina sua responsabilidade não só na/pela ficção, mas na ação social prática.

Assim como a planta da cena inicial, outros símbolos irrompem, ora mais ora menos explícitos, no decorrer do filme. Diríamos que o simbolismo ostensivo é um único e eficaz oásis na aridez do estilo de Samira. Um desses símbolos, a maçã, dá unidade ao filme e, com justiça, serve de título. A maçã aqui não está associada ao pecado, mas à redenção: é com a maçã (e mais tarde com o espelho) que a assistente social declara seu cuidado com Massoumeh e Zahra; é quando as irmãs vão, sozinhas, ao mercado comprar maçãs que fica provado: elas são sociáveis e capazes; com maçãs elas conquistam e celebram suas primeiras amizades; e como era de se esperar, é a maçã que estabelece o dilema no fim do filme e redime a diretora de subjetivismo tendencioso e frieza no desfecho. A personagem que encara a “maçã-dilema” no final é a mãe de Massoumeh e Zahra. Embora apareça pouco na história, ela é talvez a personagem mais intrigante e mais difícil de ser julgada unilateralmente. Ao mesmo tempo vítima e algoz, através dela a diretora retrata os dilemas da mulher iraniana, cerceada pela violência simbólica da tradição religiosa. Ela é cega e, como se não bastasse, anda sempre com o rosto encoberto. Diríamos que ela é duplamente cega: por uma causa natural e por outra cultural. O trauma que ela causa às meninas não é por maldade, e sim por ignorância. Pensa ela, fundada em preceitos morais e religiosos, estar fazendo o bem.

A sensação geral que o espectador tem dessa mãe no decorrer do filme não poderia deixar de ser de ojeriza, já que, mesmo sem más intenções, ela arruinou a existência das crianças. No entanto, Samira busca mediar, em suas operações formais, um julgamento menos preconceituoso a respeito dessa mulher. Neste sentido, a cena final do filme é exemplar, e merece um comentário.

O pai, depois da lição severa da assistente social, deixando-o trancafiado em casa para ele sentir na pele o desconforto da reclusão, sai com Massoumeh, Zahra e mais duas crianças a fim de comprar relógios para as filhas em um camelô. Ele avisa à esposa da saída, mas esta parece não ter escutado. Começa a chamar pelas filhas e o marido e termina por sair, tateando, de casa. Na rua, sob um pequeno prédio, é vítima da brincadeira de um menino traquinas, que do segundo andar faz uma maçã amarrada a um barbante voltear sobre a anciã cega. A poesia que emana dessa cena ganha força não só pelo simbolismo da maçã, recorrente em todo o filme, mas pelo modo insólito que a fruta aparece. Temos o enquadramento de uma deficiente visual resmungando enquanto em seu derredor “flutua” uma maçã, isto é, uma possibilidade de imersão na vida sem o ascetismo da moral pessimista que impregna a religião de Alá. O fotograma congela e o filme termina no exato momento em que a mãe de Massoumeh e Zahra consegue pegar a maçã.

Terá ela mordido a fruta? Terá ela, assim, imergido numa vida mais livre, mais saborosa? São respostas imprevisíveis e mesmo inúteis à economia formal do filme – e acerta a diretora em deixar este ponto em aberto, obrigando o espectador a co-participar reflexivamente da criação. Mas a lição de ética e de arte que Samira Makhmalbaf nos acaba de ofertar decerto irá reverberar em nossa consciência e nossa sensibilidade.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

“Deus vos livre, leitores, de tropeçar com um literato”


Miguel de Unamuno disse: “Deus vos livre, leitores, de tropeçar com um literato. Com um genuíno literato, com um profissional das letras, com um ebanista de prosa envernizada. É uma das piores desgraças que nos pode acontecer”. E antes de Unamuno, Nietzsche já dizia que quem quer se um escritor de relevo deve antes se envergonhar de ser um homem de letras.

De fato, o escritor (refiro-me especialmente ao tipo literato) é não raro um ser repugnante: egocêntrico, mimado, incapaz de ouvir, irritantemente autocentrado, cheio de manias ridículas. Nas conversas corriqueiras, literatos costumam sustentar opiniões absurdas, frágeis a qualquer argumentação séria, para se sobressaírem perante as “pessoas comuns”, que supostamente só pensam o óbvio. A tuberculose matou muitos; a AIDS tirou a vida de alguns; mas a síndrome romântica do gênio incompreendido foi a praga que mais destruiu literatos nos últimos séculos. O desejo de ser diferente ou de dizer diferente para parecer especial leva facilmente o sujeito a tornar-se un ebanista de prosa barnizada.

Para alguns, o remédio é o magistério. De fato, o ensino ajuda a equilibrar as inclinações egocêntricas do escritor, dando a ele certo bom senso. Mas até entre escritores-professores há os incuráveis; quem em sua vida estudantil não tropeçou com um desses sujeitos que pensam ser a matéria central das aulas a vida deles próprios?

Nada é mais entediante do que o gênio auto-proclamado.


segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Cinema como terapia?


BALIZAS

“O homem ambicioso ainda está entre nós, como sempre esteve, mas agora necessita de um tipo de iniciativa mais sutil, uma capacidade mais profunda de manipular a democracia das emoções, se é para conservar e expandir com sucesso sua identidade individual” (Philip Rieff).
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“O ‘triunfo da terapêutica’ [...] pode ser uma abdicação da autonomia, em que o declínio dos padrões tradicionais, associado à fé na técnica, leva as pessoas a deixar de confiar em seus próprios instintos a respeito de felicidade, realização e criação de filhos. Então as ‘profissões da ajuda’ tomam conta de sua vida, um processo descrito por Foucault, mas talvez não adequadamente explicado por ele” (Charles Taylor).
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“O triunfo da mentalidade terapêutica... que insistia em ver as questões imemoráveis da vida humana como problemas que demandam soluções. A cultura terapêutica forneceu ambos em abundância: os terapeutas transformaram os antiqüíssimos dilemas humanos em problemas psicológicos e afirmaram que eles (os terapeutas) eram os únicos que conheciam o tratamento” (Charles J. Sykes).


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UMA HIPÓTESE

Quanto mais terapêutico for um filme – quando mais ele servir para obstar o amadurecimento e a busca honesta pela verdade em prol de pílulas positivas de conforto – pior ele será. Pior especialmente no sentido ético, mas também no sentido estético, já que explorará todos os clichês da “representação clássica” (Bordwell) a fim de extrair dela seu principal e mais pernicioso dom: manipular às cegas os sentimentos do espectador.


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ALGUMAS ILAÇÕES

“Pode assistir a este filme, eu estava meio pra baixo e ele me ajudou bastante”, ela me disse. Saquei na hora que jamais devo assistir àquele filme.
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Do ponto de vista moral, À procura da felicidade, protagonizado pelo estrelão Will Smith, é o filme mais pernicioso da história do cinema. Do mesmo ponto de vista, Um instante de inocência, de Mohsen Makhmalbaf é um dos melhores, talvez O melhor.
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A ânsia terapêutica estraga rigorosamente todos os filmes de Spielberg, mesmo os mais bem realizados.
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Quando um pedagogo ou um psicólogo lhe disser que na próxima aula trará um filme, é bom que você falte à aula. O risco de o filme ser meramente terapêutico é grande; e mesmo se for um bom filme, o comentário provavelmente o estragará.
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Fulano tem um problema. Indicaram-lhe um filme que supostamente iria ajudá-lo. Ele acatou a sugestão, que não lhe serviu em nada, e ainda o fez descobrir que boa parte dos filmes são feitos exatamente para tripudiar dos sentimentos alheios, banalizando-os com malícia.
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Todo filme “terapêutico” é pernicioso e mal realizado? Penso que não. Frank Capra cativa pela ingenuidade e Majid Majidi porque troca os adultos pelas crianças e a terapia moderna pela fé. A felicidade não se compra, de Capra, e Filhos do paraíso, de Majidi, provam que existem filmes terapêuticos honestos, ainda que raros.
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Uma coisa são os filmes terapêuticos (Meu adorável professor, Patch Adams, À procura da felicidade etc), outra a “terapeutização” dos filmes. Em mãos incautas, até Glauber Rocha pode virar objeto terapêutico.
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O consumidor de filmes terapêuticos e produtos similares – livros de auto-ajuda, palestras motivacionais, ficção de misticismo barato – adia uma tomada de consciência de sua real situação consumindo cada vez mais estas ninharias.
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Muito mais que as religiões, o consumo de filmes terapêuticos e produtos similares fomentam uma cultura da culpa. Eles ensinam que a felicidade é uma questão de mera opção, sem nenhuma relação como fatores de ordem social, por exemplo. Então, se você é infeliz, dizem eles, a culpa é exclusivamente sua.
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Quem assiste a um filme para aprender – abstraindo questões de ordem estética etc em prol de se deleitar com “grandes lições” – acaba não aprendendo nada. Isto vale para as outras artes também.
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O tipo de filme terapêutico que, neste momento, triunfa no Brasil são os “filmes espíritas”. Neles, o foco é mais propriamente na fraternidade e na caridade do que naquilo que o corpo doutrinário kardecista tem de inovador. Por isso, quase não há polêmica religiosa em torno desses filmes. Não acho impossível, porém, que se erga em nosso país uma indústria de “filmes evangélicos”, de vertente neopentecostal, com sua usual agressividade doutrinária. Isto abalaria, em alguma medida, nosso quadro cultural. Me espanta o fato de os evangélicos, que já comandam um naco significativo da indústria fonográfica e das redes televisivas, não terem metido ainda a cara na empreitada cinematográfica, pois o cinema é talvez a expressão artística de maior poder de persuasão.